Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Estou escrevendo um glossário de retórica e poética e admiro particularmente certas figuras, como a litotes, o oximoro, o quiasmo e a antimetábole. Cada página é um verbete exemplificado com a poesia galega, portuguesa ou brasileira.

Compreendo a litotes como a sugestão meio eufemística, irônica de uma ideia; ou em dizer pouco para sugerir muito; atenuantemente. Portanto, um conceito um tanto mais elástico, tirado da etimologia da palavra, contrariando a maioria das definições que encontro, costumeiras em enfatizar apenas a negação do oposto. Como um dos exemplos, dentro da minha formulação, escolhi os seguintes versos de Guerra Junqueiro (A Morte de D. João, Introdução):

E o povo... o povo é rei! E rei como Jesus,

Para beber o fel, para morrer na cruz.

Disse-o pouco, mas sugeriu muito o tipo, e de forma irônica, da única "realeza" que cabe ao povo. Se a Sra. Eunice Marta me der o prazer de comentar minha proposição, tomarei por fé seus ensinamentos, ainda que contrários ao que imagino.

Agradeço antecipadamente.

Resposta:

Antes de mais, importa analisar ao pormenor o que caracteriza a lítotes ou litotes.

Em primeiro lugar, surge como a única figura de pensamento com efeitos de comparação por atenuação» (João David Pinto Correia, "A expressividade na fala e na escrita", in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, pp. 497-501), o que nos indica duas realidades que lhe são específicas: a comparação e a atenuação [aproximando-a do eufemismo, segundo o E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Reis (org.)], destacando-se o seu processo de atenuar o pensamento.

Ora, nos versos de Guerra Junqueiro que o consulente nos apresenta, observam-se estas duas facetas da litotes: a comparação directa do povo a Jesus («E rei como Jesus») e a atenuação da simbologia de Jesus (representando a imagem da vítima de sofrimento atroz — «para beber o fel, para morrer na cruz») através da ascensão ao estatuto de rei («o povo é rei»).

Não há dúvida, também, de que nesses versos está implícita «uma ironia de dissimulação com valor perifrástico», características próprias da litotes. A ironia sobressai da realidade de disforia (fel e morte na cruz) de Jesus que em nada se identifica com a imagem de poder, de abundância e de prazer associada à figura do rei. Mas essa ironia está, de facto, dissimulada de forma perifrástica, porque a palavra rei é repetida (marcando o seu valor como uma verdade inquestionável).

O único aspecto que não é aqui observado é o da presença da negação, pelo menos, de forma directa. Repare-se que, nas definições da litotes se diz, também, que «consist...

Pergunta:

Os versos de Florbela Espanca «É ser mendigo e dar...» e «É ter de mil desejos o esplendor/ E não saber sequer que se deseja» são exemplos de antíteses, ou paradoxos?

Obrigada.

Resposta:

É natural que se coloque essa dúvida, pois a antítese e o oxímoro (termo literário para designar o paradoxo, de origem filosófica) são dois recursos estilísticos que pertencem ao domínio da antonímia, uma vez que se referem a casos em que sobressai uma «relação entre unidades de sentido contrário» (E-Dicionário de Termos Literários, sob coordenação de Carlos Ceia). Na mesma linha de sentido, João David Pinto Correia, em «A expressividade na fala e na escrita» (Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Ed. Selecções do Reader’s Digest, 1991, pp. 499-500) coloca a antítese e o oximoro no grupo das «figuras de pensamento com efeitos de comparação por oposição».

No entanto, cada uma destas figuras se distingue pela suas particularidades. A antítese («da palavra grega antithesis e que a civilização latina adoptou com a grafia de antithese, designando oposição, contraste») destaca-se por se tratar de um caso em que sobressai a «aproximação de dois seres, duas realidades, duas situações com sentido antagónico, com o fim de tornar um deles mais enfático […] e tem a coordenação como fundamento sintáctico» (idem), de que são exemplos os versos de Camões — «Repousa lá no céu eternamente/ E viva eu cá na terra sempre triste» — e o excerto de Vieira — «Entre os servos de Deus há esta diferença: uns são servos de Deus, porque servem a Deus; outros são servos de Deus, porque Deus se serve eles.»

Por sua vez, o oximoro («do grego oxymóron, de oxýs = ‘arguto’ + morón = ‘estúpido’ , […] combinação e expressão de vocábulos paradoxais») dist...

Pergunta:

Estou a analisar uma estrofe de Os Lusíadas para a disciplina de Língua Portuguesa e gostava que me ajudassem. Qual é a figura de estilo presente na estrofe 89 no verso que diz «Que brandura é de amor mais certo arreio» e também gostava de saber nesse contexto o que significa a palavra arreio.

Fico à espera da resposta.

Resposta:

O verso a que a consulente se refere — «Que brandura é de amor mais certo arreio» — (o 3.º verso da 89.ª estrofe do canto VI d’Os Lusíadas, de Camões) faz parte do discurso da «belíssima» ninfa Oritia1 (uma das ninfas escolhidas por Vénus para seduzir e prender os fortes ventos que fustigavam as naus portuguesas, provocando uma terrível tempestade, o que levou Vasco da Gama a pedir auxílio a Deus), em que esta se dirige, zangada e com ressentimento, a Bóreas2 (que aqui personifica um dos ventos mais fortes), apesar do amor que sentia por ele («que do peito mais queria»).

Trata-se, portanto, de um discurso em que sobressai a crítica à atitude de Bóreas para com os portugueses, em que Oritia o caracteriza como feroz — «fero Boreas» —, evidenciando a violência e de crueldade do seu a{#c|}to, marcas de personalidade que não se adequam ao sentimento brando do amor. Com este discurso, Oritia acusa Bóreas de nunca a ter amado, pois ela considera que só ama quem é calmo/brando, condição essencial para que também possa ser digno do seu amor. Por isso lhe diz que «não convém furor a firme amante», alertando-o para o risco que ele corre, pois a fúria e a violência que o caracterizam tornam-no desagradável e inconveniente aos olhos de Oritia, razão pela qual o ameaça de este a poder vir a perder, uma vez que o amor que ela tem se transformará em medo: «Não esperes de mi, daqui em diante,/ Que possa mais amar-te, mas temer-te;/ Que amor contigo em medo se converte».

Este discurso tem, portanto, o objectivo de intimidar Bóreas, fazendo-o sentir-se mal com a violência dos seus ventos usada com os portugueses, para o levar a abandonar o seu propósito de impedir as naus de continuarem a sua viagem.

Sentiu-se necessidade de se explicar em pormenor o conteúdo desta fala de Oritia para que se torne fácil a identifi...

Pergunta:

Na frase «De muitos destes trabalhos sobram certos novelinhos», como devemos classificar morfologicamente muitos — pronome, ou determinante?

Obrigada pela atenção dispensada.

Aguardo resposta.

Resposta:

Para um esclarecimento mais pormenorizado sobre a classificação da palavra muitos, aconselha-se a consulta de duas respostas que se debruçam sobre o assunto — Sobre a classificação de pronomes como muito e algum no Dicionário Terminológico, de Edite Prada, e Sobre os quantificadores na TLEBS/Dicionário Terminológico 2008, de Ana Martins.

Segundo o Dicionário Terminológico, muitos é um quantificador existencial, uma vez que se trata de uma palavra que contribui para a construção do valor referencial de um nome com que se combina e cujo significado expressa uma quantidade relativa a um valor considerado como ponto de referência: «Muitos alunos faltaram ao teste (o número de alunos que faltaram ao teste é superior à quantidade média).»

Pergunta:

Para sermos atendidos na recepção de uma clínica médica, aguardamos na "Sala de Espera"; e, para sermos atendidos pelo médico, aguardamos na "Subespera". Pareceu-me estranha esta palavra, seria uma espera de menor tempo ou uma "segunda" espera? Cabe este prefixo?

Obrigada!

Resposta:

Não encontrámos nenhum registo da palavra «subespera» em nenhum dos vocabulários ortográficos (Vocalulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, 2009; Vocabulário Ortográfico do Português, da responsabilidade do ILTEC; Vocalulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2009) nem nos dicionários gerais consultados, o que revela que a mesma ainda não se encontra atestada no léxico.

Parece tratar-se de um termo utilizado em determinadas situações específícas, como a do universo dos hospitais, dos centros de saúde e das clínicas médicas, para designar uma sala «secundária» (uma vez que o prefixo sub- designa «posição abaixo ou inferior», «hieraquicamente inferior») na hierarquia do espaço físico da instituição a que pertence. A partir do contexto em que se encontra, infere-se que se trate de uma segunda sala para onde os utentes passam (aguardando a consulta de determinado médico), após terem estado na sala de espera (onde terão aguardado para fazer a triagem, por exemplo).