Pergunta:
Estou escrevendo um glossário de retórica e poética e admiro particularmente certas figuras, como a litotes, o oximoro, o quiasmo e a antimetábole. Cada página é um verbete exemplificado com a poesia galega, portuguesa ou brasileira.
Compreendo a litotes como a sugestão meio eufemística, irônica de uma ideia; ou em dizer pouco para sugerir muito; atenuantemente. Portanto, um conceito um tanto mais elástico, tirado da etimologia da palavra, contrariando a maioria das definições que encontro, costumeiras em enfatizar apenas a negação do oposto. Como um dos exemplos, dentro da minha formulação, escolhi os seguintes versos de Guerra Junqueiro (A Morte de D. João, Introdução):
E o povo... o povo é rei! E rei como Jesus,
Para beber o fel, para morrer na cruz.
Disse-o pouco, mas sugeriu muito o tipo, e de forma irônica, da única "realeza" que cabe ao povo. Se a Sra. Eunice Marta me der o prazer de comentar minha proposição, tomarei por fé seus ensinamentos, ainda que contrários ao que imagino.
Agradeço antecipadamente.
Resposta:
Antes de mais, importa analisar ao pormenor o que caracteriza a lítotes ou litotes.
Em primeiro lugar, surge como a única figura de pensamento com efeitos de comparação por atenuação» (João David Pinto Correia, "A expressividade na fala e na escrita", in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, pp. 497-501), o que nos indica duas realidades que lhe são específicas: a comparação e a atenuação [aproximando-a do eufemismo, segundo o E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Reis (org.)], destacando-se o seu processo de atenuar o pensamento.
Ora, nos versos de Guerra Junqueiro que o consulente nos apresenta, observam-se estas duas facetas da litotes: a comparação directa do povo a Jesus («E rei como Jesus») e a atenuação da simbologia de Jesus (representando a imagem da vítima de sofrimento atroz — «para beber o fel, para morrer na cruz») através da ascensão ao estatuto de rei («o povo é rei»).
Não há dúvida, também, de que nesses versos está implícita «uma ironia de dissimulação com valor perifrástico», características próprias da litotes. A ironia sobressai da realidade de disforia (fel e morte na cruz) de Jesus que em nada se identifica com a imagem de poder, de abundância e de prazer associada à figura do rei. Mas essa ironia está, de facto, dissimulada de forma perifrástica, porque a palavra rei é repetida (marcando o seu valor como uma verdade inquestionável).
O único aspecto que não é aqui observado é o da presença da negação, pelo menos, de forma directa. Repare-se que, nas definições da litotes se diz, também, que «consist...