Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
65K

Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Porquanto minha língua ainda se furtasse a seu ofício, permaneci calado.»

No período acima, a oração iniciada por conjunção é coordenada explicativa, ou subordinada adverbial causal?

Obrigado.

Resposta:

A questão que coloca implica problemas de dois tipos. Por um lado, porquanto, como outras conjunções, aparece associada tanto a coordenadas explicativas como a subordinadas causais; por outro lado, estamos perante uma construção pouco usual, uma vez que a oração introduzida pela conjunção tem o verbo no conjuntivo.

Começando pelo primeiro dos aspectos, se a conjunção pode introduzir tanto uma coordenada como uma subordinada, de que forma poderemos classificar a oração que ela introduz?

Um dos aspectos que costumam ser apontados como característicos da coordenação é o facto de a oração iniciada pela conjunção não poder ocorrer no início da sequência. Note-se, no entanto, que as subordinadas consecutivas apresentam o mesmo tipo de restrição que se justifica pela existência de elementos correlativos colocados na subordinante, como se verifica em «Fiquei tão preocupada, que saí sem me despedir».

Voltando à frase em apreço, como a posição ocupada pela oração conjuncional é em início de sequência, classificá-la-ia como subordinada causal.

Poderá perguntar-se se bastaria inverter a ordem para a mesma oração poder ser considerada coordenada explicativa. Importa referir que, para muitos estudiosos, a coordenação explicativa não existe, sendo todos os exemplos associados à subordinação causal. No entanto, continua a haver quem identifique características específicas em algumas frases que as aproximam mais da coordenação do que da subordinação. Os estudos que consultei não dão exemplos com a palavra porquanto, pelo que apresento um exemplo com porque:

(1) «O patrão está cá porque a luz está acesa.»
(2) *«Porque a luz está acesa o patrão está cá.»

Pergunta:

Gostava de saber o que é complexidade sintáctica e como pode aumentar/diminuir a dificuldade de leitura/compreensão de um texto/frase.

Precisava desta informação para um trabalho de inteligência artificial.

Resposta:

Uma frase é considerada simples quando contém uma única oração e complexa quando tem mais de uma oração. Das frases que o consulente escreve, a primeira é complexa e a segunda simples.

Na primeira temos três orações expressas e uma subentendida (esta indicada  a seguir entre parênteses rectos): «Gostava de saber — «o que é complexidade sintáctica» — «e [gostava de saber] como pode aumentar/diminuir a dificuldade de leitura/compreensão de um texto/frase».

Na segunda há uma única oração: «Precisava desta informação para um trabalho de Inteligência Artificial.»

Quanto à dificuldade de leitura ou compreensão de um texto, muitos são os factores que podem intervir. Imaginando que não está a pensar em literatura (cuja complexidade é, habitualmente, muito maior) mas sim em textos informativos, ou técnicos, poderemos considerar que a sintaxe, ou seja, o recurso a mais ou menos frases complexas, contribui para facilitar ou dificultar a interpretação de um texto, tal como o uso de frases intercalares.

O vocabulário utilizado é outro factor a ter em conta. Se houver muitas palavras desconhecidas para um dado leitor, a compreensão do texto será comprometida.

Também o referente contextual subjacente ao texto poderá ser um elemento facilitador ou não da compreensão. Se, por exemplo, se tratar de um texto que explique como determinado componente ou grupo de componentes funciona, o texto será entendido com mais facilidade por alguém que conheça os componentes em causa do que por uma pessoa que não saiba como são esses componentes.

Pergunta:

Vi no vosso site que «tem que ver» é a expressão correcta, dado que «tem a ver» usa a sintaxe francesa. No entanto, não encontrei uma explicação sobre a origem da expressão «tem que ver», ou seja, o que é que a expressão está a abreviar. Porque é que se usa o que e não o a?

Resposta:

Se qualquer das expressões «ter a ver» (e eu acrescentaria com) ou «ter que ver com» for colocada na negativa, vemos que há necessidade de inserir o indefinido nada:

a) «Não ter nada a/que ver com...»

Poderemos considerar que aquele que terá tido, em algum momento, expresso um antecedente indefinido, como algo, alguma coisa, formando frases do tipo «Este assunto tem algo que ver com aquele», podendo este facto ser um argumento a favor dos que defendem como única forma adequada a forma «ter que ver com», sendo que analisado como um pronome relativo sem antecedente.

Para mais informação sobre este assunto, poderá consultar as respostas: Ainda à volta do ter a ver/ter que ver/ter a haver e De novo o ter que ver/ter a ver/ter a haver, etc.

Pergunta:

A nível da classificação morfológica das palavras, como distinguimos se a palavra é um deíctico ou, por exemplo, um advérbio de tempo; assim como em relação aos pronomes pessoais: eu, ele — são deícticos ou pronomes pessoais; ou as duas designações estão correctas?

Resposta:

A língua portuguesa pode ser abordada de diferentes "pontos de vista", ou seja, tendo em conta aspectos diversos, tradicionalmente arrumados em partes diferentes da gramática da nossa língua. Assim, se queremos estudar a forma como determinada sequência se pronuncia, abrimos um manual de gramática na fonética. Se nos interessa saber se um nome varia em género ou em número, a parte da gramática que nos interessa é a morfologia. Também é, tradicionalmente, na morfologia que se estudam as diversas classes de palavras, ou, como outros designam, as partes do discurso.

O termo deíctico não designa uma classe de palavra, pelo que não deve intervir na classificação morfológica. De uma forma muito simplista, poderemos dizer que se trata de um termo que, no texto, veicula um determinado valor de referenciação, transmitindo informação referente a aspectos espácio-temporais ou referentes à situação de comunicação, permitindo identificar os interlocutores de um discurso. Esses aspectos estão, na gramática, associados à semântica e à pragmática.

Os pronomes pessoais eu, ele, etc. são, do ponto de vista morfológico, pronomes pessoais, dos quais podemos, no âmbito da morfologia, identificar o número, nos dois, e o género, em ele. Poderemos, ainda, identificar o caso, que será nominativo.

No dicionário de termos linguísticos, poderá ver a definição de deíctico e a de deixis, bem como as áreas da gramática a que se associam.

Pergunta:

«No dia, entre todos bendito, em que a "Pérola" apareceu à barra com o Messias (...).»

[Nesta sequência,] quais são as figuras de estilo presentes?

Resposta:

Antes de mais, importa localizar adequadamente o excerto que envia, para que se compreenda bem o contexto em que ocorre esse excerto e os sentidos das palavras que contém. Introduzo um excerto alargado de A Cidade e as Serras:

«Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa o "D. Galião", descendo uma tarde pela Travessa da Trabuqueta, rente de um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto — até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos:
— Oh Jacinto "Galião", que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas pedras? E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o Senhor Infante D. Miguel! Desde essa tarde amou aquele bom Infante como nunca amara, apesar de tão guloso, o seu ventre, e apesar de tão devoto o seu Deus! Na sala nobre da sua casa (à Pampulha) pendurou sobre os damascos o retrato do "seu Salvador", enfeitado de palmitos como um retábulo, e por baixo a bengala que as magnânimas mãos reais tinham erguido do lixo. Enquanto o adorável, desejado Infante penou no desterro de Viena, o barrigudo senhor corria, sacudido na sua sege amarela, do botequim do Zé Maria em Belém à botica do Plácido nos Algibebes, a gemer as saudades do "anjinho", a tramar o regresso do "anjinho". No dia, entre todos bendito, em que a "Pérola" apareceu à barra com o Messias, engrinaldou a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papelão e lona onde D. Miguel, tornado S. Miguel, branco, de auréola e asas de Arcanjo, furava de cima do seu corcel de Alter o Dragão do Liberalismo, que se ...