Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na expressão «Auto da Barca do Inferno», quantos (e quais) complementos determinativos temos?

Devemos considerar «da Barca do Inferno» complemento determinativo de «Auto», e «do Inferno» complemento determinativo de «barca»? Ou devemos considerar separadamente «da Barca» e «do Inferno»?

Haverá outra forma de analisar a expressão?

Obrigada.

Resposta:

A minha interpretação aproxima-se muito da sua. Temos, efectivamente, dois complementos determinativos — ou complementos do nome, se utilizarmos a nova nomenclatura em Portugal — associados cada um a um nome diferente, como refere. O facto de se considerarem ou não os dois complementos depende do grau de profundidade a que se pretenda levar a análise. Se se quiser fazer uma análise em que se identifique apenas o grupo nominal na sua globalidade, por exemplo na identificação do sujeito numa frase do tipo «O Auto da Barca do Inferno é uma crítica social», então a sequência «O Auto da Barca do Inferno» constitui uma unidade. Mas podemos fazer uma análise mais exaustiva, identificando as relações que se estabelecem no interior da expressão, ou grupo nominal:

Grupo nominal: «O Auto da Barca do Inferno»
Núcleo do grupo nominal: «O Auto»
      Complemento do nome «auto»: «da Barca do Inferno»
          Complemento do nome «barca»: «do Inferno»

Não há, em termos de análise sintáctica, uma obrigatoriedade de se ser exaustivo em cada análise. Tudo depende do objectivo que se pretende atingir.

Bom trabalho!

Pergunta:

Parece incrível, mas 4 anos depois voltei a ter a mesma dúvida, tendo encontrado o meu post ao pesquisar pela mesma (http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=14721) e ficado admirado com o facto de já ter perguntado o mesmo há tanto tempo.

O problema mantém-se. Todas as pessoas com quem contacto usam desseleccionar na convicção de que faz parte do vocabulário. A mim ainda me faz "comichão" porque alguma coisa me diz que não está "certo", mas ao mesmo tempo outras soluções propostas não servem.

Quando digo «não servem», refiro-me ao facto de não expressar o sentimento típico de quem... hã... desselecciona uma lista de checkboxes! Se calhar é vício de expressão de quem está habituado a lidar com formulários na Internet, mas a verdade é que desmarcar não encaixa, por algum motivo. Percebo perfeitamente a lógica da palavra e a sua expressividade, mas se digo desmarcar para alguém, fica a olhar para mim sem saber o que eu quero dizer (já fiz esse teste).

Quando digo desmarcar, as pessoas pensam principalmente em anular um compromisso («desmarcar um encontro», «desmarcar uma reunião»). Se tento levá-las para o contexto de um formulário no computador, dizem: «aah! Desseleccionar!». E ficam a olhar para mim como se eu estivesse a utilizar mal a língua portuguesa, não se usa desmarcar no contexto de um formulário de computador (mas, por incrível que pareça, se for num papel, já parece fazer mais sentido).

Ou seja, 4 anos depois da minha dúvida, a palavra já está mais ...

Resposta:

A palavra desseleccionar está bem formada em português. É uma palavra derivada por prefixação, tendo sido associado a seleccionar o prefixo des-, bastante produtivo em português, diga-se.

Sendo uma palavra bem formada e tendo um espaço próprio, ou seja, um sentido específico numa área de saber também específica, não há, estou convencida disso, qualquer problema em a considerar como uma palavra portuguesa.

O facto de não estar dicionarizada pode ser justificado por diversas razões. Uma delas poderá ser o facto de se tratar de uma palavra relativamente recente (data de 1997 a primeira questão colocada ao Ciberdúvidas sobre ela). Outra poderá ter que ver com o facto de ter um sentido bastante transparente, ou seja, que não causa dificuldades de interpretação. Este aspecto é importante, pois na elaboração de um dicionário há, certamente, prioridades e critérios a definir, dado que nenhum comporta todas as palavras de uma língua. E a facilidade de descodificação do sentido poder ser um critério a adoptar.

O consulente coloca muito bem a questão, pois procura saber como sentem a palavra e que sentido aqueles que usam na sua actividade. E se esse grupo se apropriou da palavra e a aplica de forma sistemática, então ela existe.

Claro que causa alguma estranheza, sobretudo porque, contrariamente à maioria de situações em que temos dois -ss- intervocálicos, a leitura de desseleccionar se faz diferenciando as duas consoantes e não as considerando como se fossem um só som. Não é, porém, o primeiro caso deste género na língua portuguesa. Vejam-se: desselar,

Pergunta:

Tenho encontrado a palavra abandónica (caracterizando, por exemplo, mãe ou família) em literatura especializada.

Está correcta?

Existem alternativas a esta palavra?

Obrigado.

Resposta:

É uma palavra correcta, sim. Trata-se de um adjectivo cuja formação é semelhante à de telefónico, arquitectónico, etc. Parece ter entrado no português por via do castelhano. No endereço http://ruibebiano.net/zonanon/non/abc/nestor.html, encontrei referência a um artigo da autoria do argentino Néstor Osvaldo Perlongher, em co-autoria com Sergio Pérez Álvarez e Ramón Sal Llarguez, intitulado La familia abandónica y sus consecuencias, datado de 1980.
Quanto às alternativas para esta palavra, há um aspecto muito importante a ter em conta: estamos perante um termo técnico, como refere. E os termos técnicos fazem parte de terminologias específicas de uma dada área do saber, cabendo apenas aos especialistas encontrar os termos de que necessitam e que, por serem termos específicos, devem, contrariamente ao que acontece no vocabulário comum, ter um único sentido.

Podemos, no entanto, pensar se no vocabulário comum da língua portuguesa haveria uma palavra que pudesse desempenhar o papel reservado a esta. Dos textos que li numa pesquisa que fiz, parece-me poder dizer que uma pessoa ou uma família abandónica se caracteriza por ter propensão para abandonar as suas crianças, podendo esse abandono ser total ou parcial. A única palavra de que me lembro é o particípio presente abandonante, que seria um outro neologismo e que não abrange o conjunto de situações que abandónico cobre. Com efeito, se tivermos em conta o sentido implícito veiculado pelo particípio presente, diríamos que abandonante é aquele que abandona efectivamente, enquanto abandónico parece-me que designa um traço de carácte...

Pergunta:

Ultimamente é frequente ouvir, especialmente em transmissões ou comentários sobre futebol, diversos intervenientes utilizar a "palavra" desposicionar.

A minha dúvida é simplesmente esta: Esta palavra existe na língua portuguesa?

Obrigado.

Resposta:

Se o seu objectivo é saber se a palavra está dicionarizada, devo dizer que não a encontrei registada em nenhum dos dicionários consultados. Isso não significa, porém, que a palavra não exista. Há processos de formação de palavras que, intuitivamente, qualquer falante de língua portuguesa aplica na formação de novas palavras. Esse processo é respeitado em desposicionar: ao verbo posicionar, também ele de formação recente (no Dicionário Houaiss, refere-se que a primeira ocorrência é do século XX) associa-se o prefixo des-, bastante produtivo em português, refira-se.
Poderá perguntar-se se é necessária a nova palavra. Desposicionar é sair da posição, sair do lugar. Não me ocorre um outro verbo que tenha o mesmo sentido condensado numa só palavra. Lembro-me de deslocar, mas esta palavra, se tem o mesmo sentido de movimento, não encerra a ideia de que esse movimento ou essa deslocação aconteça a partir de um ponto previamente definido, ou mesmo regulamentado.

Será que a criatividade linguística dos portugueses está a mudar? Ou seja, estará o português europeu a, tal como já acontece mais frequentemente com o português do Brasil, preferir a entrada de neologismos formados por uma só palavra em vez de locuções? Ou seja, estará a tornar-se, nesta área, numa língua sintética, perdendo o seu cariz analítico?

Voltando à sua questão, a palavra não está dicionarizada, mas existe, a partir do momento em que alguém a utiliza. O futuro dirá se veio para ficar…

Pergunta:

Creio tratar-se de locuções adverbiais. Estou em dúvidas de classificá-las adequadamente:

1.ª) — intensidade («estou a ponto de explodir»); 2.ª) — temporal, modo, etc. («o bolo já está ao ponto: se encontra assado»); 3.ª) — de lugar («o aparelho geiser sinalizou no ponto exato onde estava material radiativo...»; «João foi encontrado no ponto marcado.»)

Resposta:

Analisemos cada um dos exemplos apresentados:

(1) «Estou a ponto de explodir.»

«A ponto de» é, neste exemplo, uma locução adverbial equivalente a quase, prestes a, veiculando, efectivamente, um sentido de intensidade.

(2) «O bolo já está ao ponto: se encontra assado»;

A forma adequada, atestada em dicionários editados quer em Portugal quer no Brasil, é estar no ponto, ou seja, nas condições ideais, concluído:

(2.1) «O bolo já está no ponto

Poderemos, como sugere, atribuir a esta expressão um valor temporal, se nos centrarmos no tempo que demorou a cozer, ou de modo, ou situação, se tivermos em conta a forma como ele está face ao objectivo final: ele está capaz de ser consumido.

(3) «O aparelho geiser sinalizou no ponto exacto onde estava material radiativo...»;

No exemplo (3), dadas as características lexicais do verbo sinalizar, que fazem dele um verbo transitivo directo, não se espera que o nome ponto seja antecedido por uma preposição:

(3.1) «O aparelho geiser sinalizou o ponto exacto onde estava material radiativo...»;

«O ponto exacto» é o objecto directo de sinalizar.

(4) «João foi encontrado no ponto marcado

Também no exemplo (4) não estamos perante uma expressão fixa, ou locução, e sim perante um complemento preposicional, que veicula, com...