Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual é a regra gramatical que faz com que se retire o r em «eles devem adaptá-las» e não em «eles devem adaptar-se» (sei que o mais correcto seria eles devem se adaptar, mas adaptar-se também se aplica, não?)

Tanto o «adaptá-las» como o «adaptar-se» são infinitivo... Qual é a regra?

Resposta:

Sempre que a forma verbal termine em -r, -s, -z, esta consoante desaparece, e o pronome assume a forma lo, la, los, las:

1 – «Ontem encontrámos o João.» — «Ontem encontrámo-lo

2 – «Quero fazer o trabalho.» — «Quero fazê-lo

3 – «Ele faz o trabalho bem feito.» — «Ele fá-lo bem feito.»

Se a forma verbal for aguda e terminar em -e, -o, ou -a, adquire acento tónico, como se verifica em 2 e 3.

Se a forma verbal terminar em ditongo nasal, o pronome adquire a forma no, na, nos, nas:

4 – «Ele põe o livro em cima da mesa.» — «Ele põe-no em cima da mesa.»

5 – «Eles dão o trabalho por concluído.» — «Eles dão-no por concluído.»

6 – «Eles fizeram o trabalho.» — «Eles fizeram-no

Pergunta:

Quando usar si ou se? Existe algum macete para poder tirar a dúvida?

Resposta:

Permita-me, antes de mais, um pequeno comentário ao uso de macete. O trabalho no âmbito do Ciberdúvidas é sempre aliciante, e cada questão apresentada equivale a um enriquecimento de quem responde! Com esta questão, aprendi que macete tem, no Brasil, o sentido figurado de «truque», «artifício».

Em relação à questão que apresenta, creio que o macete mais simples que posso indicar-lhe é: junto de verbo: se; após preposição: si. Exemplos:

1 – «Não se vê muito bem aqui.»
2 – «Este livro lê-se facilmente.»
3 – «Olho para si, e penso…»
4 – «Falam de si como se o conhecessem bem».

Note-se ainda que si é muito mais usado em discurso directo, ou seja, quando há uma interpelação directa a alguém, como se depreende, de certo modo, de 3 e 4.

Por outro lado, frases como 3 e 4 devem soar de forma estranha aos ouvidos de um brasileiro, uma vez que, no Brasil, o pronome pessoal está a ser preferencialmente usado no caso nominativo (ele, você...), quando antecedido de preposição. Acresce que o pronome si é usado no Brasil sobretudo com um sentido reflexo, muitas vezes reforçado com o pronome mesmo («de si mesmo», «para si mesmo»). Assim, o mais comum seria, para estas frases, algo como:

3´ – «Olho para você, e penso…»
4´ – «Falam de você/dele como se o conhecessem bem».

Pergunta:

No texto [de um autor brasileiro], há uma frase que parece imprecisa. Ela deixa no ar certa ambiguidade, já que parece elidir os termos gramaticais do que/ao invés de. O trecho é: «A poesia tem uma realidade independente da matéria que serviu para sua criação, é por assim dizer exterior a essa matéria, participando muito mais do espírito de seu criador, ou da época, da finalidade, das circunstâncias, do ambiente em que foi criada.» Minha dúvida se refere ao uso do ou. Caso o autor tivesse utilizado do que/ao invés de, não haveria qualquer ambiguidade. Estou certo? Observem o argumento, a premissa «a matéria da poesia participa do espírito do seu criador», entra em contradição com a continuação da frase... Pois se pode sofrer influência de tudo, não tem porque afirmar a premissa inicial, não é? Eu ocultei o autor, pois a fama dele pode inibir o juízo imparcial do especialista [...].

Resposta:

Torna-se difícil analisar-se uma frase sem o contexto em que está inserida. Tratando a questão colocada pelo consulente acerca de um período de um texto, sem acesso ao excerto a que pertence, compromete a possibilidade de uma leitura objectiva, permitindo diferentes análises da mesma frase. Mesmo assim, detectam-se problemas estruturais que acabam por se traduzir em ambiguidade. Propõem-se duas leituras da frase:

1.ª) Se a analisarmos tendo em conta a liberdade poética que, por sua vez, usufrui da licença de se desligar da matéria (do tema, do assunto, do objecto à roda da qual o texto gira), tornando-se a poesia autónoma dessa realidade, mas tendo as marcas do seu criador, da época em que foi realizada, da finalidade, das circunstâncias, do ambiente…, apercebemo-nos de que há a
elipse do termo de comparação, pelo que a frase completa será:

«A poesia tem uma realidade independente da matéria que serviu para sua
criação, é por assim dizer exterior a essa matéria, participando muito mais do espírito de seu criador, ou da época, da finalidade, das circunstâncias, do ambiente em que foi criada [do que da matéria que serviu para a sua criação]»

Incluindo nesse texto este termo de comparação — «do que da matéria...», a frase ficaria mais clara e compreender-se-ia a utilização da conjunção coordenativa (disjuntiva ou alternativa) ou, pois as realidades enumeradas — «o espírito do criador», «a época», «a finalidade», «as circunstâncias» e «o ambiente» — estariam ao mesmo nível, não se destacando a primeira das restantes, aparecendo como realidades «que contribuem para a produção desse tipo de texto literário», como «termos da alternativa [que] não se excluem, tratando-se, assim, de um caso de estrutura de disjunção inclusiva (João Peres e Telmo Móia,

Pergunta:

Cumprimento-os por este belíssimo site de auxílio a tantos amantes da língua portuguesa. Quanto tenho usufruído dele!

Minha dúvida recai sobre o verbo bastar. Em muitas situações, mesmo quando o utilizamos como intransitivo, ele parece pedir um complemento. Exemplos:

a) «Bastou ela ir embora para ele voltar.»

b) «Bastou o sol surgir, que as ideias também nasceram.»

c) «Bastou que o meu pai falasse, e todos se manifestaram.»

Estão essas frases acima corretas? Pode-se usar o verbo bastar seguido da preposição para ou das conjunções que ou e?

Há exemplos parecidos no Aurélio, Houaiss e Luft (Dicionário Prático de Regência Verbal), mas nada muito esclarecedor.

Peço-lhes ajuda.

Resposta:

O Ciberdúvidas agradece as suas palavras simpáticas!

Quanto aos exemplos que apresenta, são muito interessantes e, cada um deles, um verdadeiro desafio! Antes de mais, importa dizer que o verbo bastar é, frequentemente, construído com o sujeito posposto, como acontece nos exemplos que apresenta e que repito:

a) «Bastou ela ir embora para ele voltar.»
b) «Bastou o sol surgir, que as ideias também nasceram.»
c) «Bastou que o meu pai falasse, e todos se manifestaram.»

Do ponto de vista dos complementos que exige, o verbo pode ser:

Intransitivo, como no exemplo de Aurélio: «Não basta o prejuízo; há ainda por cima o sofrimento.»

Transitivo indirecto: «Basta-lhe o pouco que tem.»

Transitivo indirecto e oblíquo (ou seja, completado através de uma preposição, sem que o complemento assim formado possa ser considerado indirecto): «Pouco lhe bastará para esta viagem.» Este exemplo ilustra em Celso Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal, 8.ª ed., São Paulo, 2002, o facto de o verbo ser transitivo indirecto, mas creio que o verbo só fica completo com o complemento introduzido pela preposição para.

Transitivo oblíquo: «Basta que ele o diga para eu acreditar.» Exemplo do Dicionário de Verbos e Regimes, de Francisco Fernandes, 44.ª ed., S. Paulo, Globo, 2003, onde se fala de transitivo relativo.

Na alínea b), o complemento do verbo é introduzido pela conjunção de valor final que equivalente a para que. De facto, tanto em a)...

Pergunta:

Sou frequentadora assídua das páginas do Ciberdúvidas. Aqui encontro respostas às mais diversas dúvidas que, por vezes, se apresentam enquanto escrevo. Sem dúvida, este é um espaço no qual se encontram orientações elaboradas de forma clara, correta e objetiva.

No entanto, quero tecer alguns comentários a respeito da resposta dada às questões do texto Sobre a próclise, a mesóclise e a ênclise (Edite Prada :: 04/05/2004).

As respostas apresentadas ao consulente são bastante elucidativas, porém as justificativas dadas ao uso do pronome no Brasil são, no meu modo de pensar, extremamente superficiais. Aliás, nem se pode falar no plural, pois há somente uma: "porque obedece à regra geral".

No Brasil, há, sim, um distanciamento natural entre a fala e a escrita, por motivos que vão muito além do mero descaso para com a língua – há raízes históricas e problemas estruturais graves.

No que concerne à norma culta, mais especificamente à escrita, preconiza-se o uso das regras. Dessa forma, as justificativas aqui deveriam levar em conta as normas gramaticais e não o uso informal da língua, pois dá a impressão de que no Brasil os gramáticos concordam com esta "regra geral" e que as escolas adotam-nas.

O brasileiro, ainda que tenha bons conhecimentos e uma sólida formação, estabelece diferenças entre as diversas situações de uso da língua. Eu arriscaria dizer que, com relação à fala, somos muito mais "situacionais" – "contextuais" do que propriamente "gramaticais".

Eu disse com relação à fala, pois os que fazem uso do padrão culto na modalidade escrita sabem que as regras existem e que a gramática é normativa.

Felicidades a todas(os) e parabéns ...

Resposta:

Começo por agradecer as palavras simpáticas com que se refere ao trabalho do Ciberdúvidas.

Quanto às suas observações, cito alguns gramáticos.

Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2001, 37.ª ed., diz na p. 587:

«A Gramática, alicerçada na tradição literária, ainda não se dispôs a fazer concessões a algumas tendências do falar de brasileiros cultos e não leva em conta as possibilidades estilísticas que os escritores conseguem extrair da colocação de pronomes átonos.»

Entre os exemplos com que ilustra o seu texto encontra-se o seguinte:

1 – «Querendo parecer originais, nos tornamos ridículos ou extravagantes»  Marquês de Maricá (p. 588).

Na página 590, sobre a colocação do pronome em locuções verbais, descreve todas as possibilidades, uma das quais (2) não é sancionada pela norma em Portugal, dado não estar presente um atractor de próclise:

2 – «Eu lhe quero falar.»

3 – «Eu quero-lhe falar.»

4 – «Eu quero falar-lhe.»

Na mesma página, um pouco mais a baixo apresenta outro exemplo semelhante a 2:

2´ – «Eu lhe tenho falado.»

Em nota, nessa mesma página, acrescenta:

«Com mais frequência ocorre entre brasileiros, na linguagem falada ou escrita, o pronome átono proclítico ao verbo principal, sem hífen:
     Eu quero lhe falar.
     Eu...