Uma das grandes qualidades do Ciberdúvidas é também o seu calcanhar de Aquiles, estamos convictos disso. Estou a falar da diversidade de formas de pensar e de interpretar a língua que se pode identificar na análise das respostas disponibilizadas. Além disso, na sua globalidade, cada um dos consultores, como ser humano que é, tem momentos de maior ou de menor felicidade e eficácia no trabalho que executa. Poderíamos falar do ideal. E todos nós diríamos que o ideal seria articular todas as respostas, de forma que todas as divergências de interpretação estivessem identificadas e justificadas. Ao ideal, todavia, sobrepõe-se o possível. Com cerca de 30 000 respostas em linha e com o número possível de colaboradores efectivos, vamos fazendo o nosso melhor. Só disso podemos dar conta aos nossos leitores. Para as potenciais incongruências, solicitamos, a par de alguma compreensão, um olhar crítico construtivo, que nos ajude a melhor servir todos os que recorrem ao Ciberdúvidas.
Esclarecido o «Em que ficamos», vejamos o problema dos conceitos justaposição e aglutinação. Da leitura da globalidade de respostas associadas a este tema, ressalta, parece-me, a dificuldade de fixar no Ciberdúvidas o que não está fixado, inequivocamente, na norma.
Se é verdade que no Acordo Ortográfico de 1945, base 28, se diz que «Se, no conjunto dos elementos de um composto, está perdida a noção da composição, faz-se a aglutinação completa: girassol, madrepérola, madressilva, pontapé», também é verdade que as melhores gramáticas normativas por que nos temos regido têm uma interpretação diferente:
Cunha e Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, consideram, explicitamente, madrepérola e passatempo compostos por justaposição (p. 106).
Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, diz que há justaposição quando é fácil identificar os elementos constituintes da nova palavra, por manterem alguma individualidade. Diz ainda que «Esta individualidade se traduz:
a) Na escrita, pela mera justaposição de um radical a outro, normalmente separados por hífen;
b) Na pronúncia, pelo fato de ter cada radical o seu acento tônico, sendo o último o mais forte e o que nos orienta na classificação da posição do acento nas palavras compostas» (p. 340).
O mesmo autor refere:
«Chamamos aglutinação ao processo de formar palavras compostas pela fusão ou maior integração dos dois radicais: planalto, fidalgo, lanígero, agrícola. Esta maior integração traduz-se pela perda da delimitação vocabular decorrente:
1) Da existência de um único acento tônico;
2) Da troca ou perda de fonema;
3) Da modificação da ordem mórfica» (p. 340).
A alteração verifica-se, diz-nos ainda Bechara, na primeira palavra do composto. E essa alteração, ou adaptação, ocorre de quatro formas:
«[...] 1) mudança da parte final em relação à mesma palavra quando isolada; ex. lobis – (comparar lobo, em lobisomem); 2) redução da palavra ao seu elemento radical; ex. planalto, onde plan- é o radical de plano […]; 3) elemento radical alterado em relação à palavra quando isolada; ex. vinicultura (vin-, mas vinh- em vinha [...]); 4) elemento radical que não aparece em português em palavra isolada; ex. agricultura» (p. 340).
Da leitura do texto do Acordo Ortográfico de 1945, parece depreender-se a ideia de que a não existência de hífen é condição suficiente para se classificar uma palavra como aglutinada. A mesma leitura pode ser feita a partir da observação à base XV do acordo de 1990, que se transcreve:
«Obs. Certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, mandachuva, pontapé, paraquedas, paraquedista, etc.»
Igual interpretação surge também nas instruções que antecedem o Vocabulário Ortográfico Resumido da Língua Portuguesa:
«Observação 4.ª – Quando se oblitera a noção do composto, não se emprega o hífen, e o composto é escrito aglutinadamente: bancarrota, madrepérola, rodapé, salsaparrilha, varapau, etc.» (p. XXV).
Da leitura dos gramáticos citados não é isso que se conclui. Antes se associa aglutinação apenas às situações em que o primeiro elemento do composto sofre alterações. Por seu lado, a consulta dos dicionários também não ajuda a esclarecer os conceitos. Vejamos a definição que ocorre no dicionário da Porto Editora:
«aglutinação
1. acto ou efeito de aglutinar
2. reunião de elementos distintos de forma a constituir um todo homogéneo; junção, ligação
[…]
5. GRAMÁTICA fusão de duas ou mais palavras numa só, de modo a formar um todo significativo
6. LINGUÍSTICA processo de formação de palavras que caracteriza as línguas aglutinantes e em que aquelas se formam juntando-se à raiz afixos que exprimem categorias e relações gramaticais
(Do lat. agglutinatiōne-, "ligação; dedicação")»
«aglutinar
1. unir com cola ou grude; fazer aderir
2. pegar
3. juntar; unir
4. GRAMÁTICA reunir duas ou mais palavras num todo subordinado a um só acento predominante
(Do lat. adglutināre, «unir»)»
«justaposição
1. acto ou efeito de colocar ou colocar-se mesmo ao lado
2. situação de uma coisa ao lado de outra, sem nada a separá-las, aposição
[…]
4. GRAMÁTICA junção de duas ou mais palavras em que cada elemento conserva a sua integridade gráfica e prosódica
(De justa- + posição)»
Se tivermos em conta o que se diz no ponto 4 do verbete aglutinar, então a existência do hífen é suficiente para estarmos perante aglutinação, pois só nessa situação a palavra tem um só acento predominante. Mas se tivermos também em conta o que se diz no ponto 4 do verbete justaposição, ficamos um pouco mais confusos: a ausência de espaço entre as palavras é mais integradora (aglutinadora?) do que a presença de um hífen nessa posição?
Mantém-se a dúvida: o que implica, verdadeiramente, aglutinar? Ligar alterando, ou ligar apenas? Não sei. Talvez por ser difícil afinar posições se não tenham incluído, na nova terminologia que está a ser introduzida em Portugal nos ensinos básico e secundário, os termos aglutinação e justaposição.