Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber qual a função sintáctica de «de Ciências» em «Pousei o livro de Ciências». É modificador? E será diferente na frase «O livro de Ciências está na mesa»? No fundo, gostava de saber se o que se chamava complemento determinativo (genitivo) é sempre um modificador restritivo ou, por vezes, é um complemento do nome. Porquê?

Muito obrigada.

Resposta:

Os nomes que têm estrutura argumental, ou seja, que pedem complemento, têm determinadas características que, na maioria das situações, são facilmente identificáveis.

1 — Os nomes que derivam de adjectivos, de outros nomes, ou de verbos têm, habitualmente, complemento;

2 — Nomes que estabelecem com o nome encaixado relação estreita:

a) relação de parentesco: «O irmão da Maria»;
b) relação parte-todo: «A perna da mesa»; «o braço da Maria»;
c) relação de possuidor/agente (o que pratica a acção)/tema (entidade sobre quem recai a acção praticada): «A fotografia da Maria» (agente: que a Maria tirou; tema: que tiraram à Maria);
d) fonte/origem: «vinho do Porto»;
e) matéria: «camisa de seda»;
f) nomes icónicos: «imagem de Lisboa».

 

Tendo como base esta síntese, adaptada da Gramática de Língua Portuguesa, de Mira Mateus e outras, p. 331 e 332, e da autoria de Ana Maria Brito, poderemos ter dificuldade em encaixar aqui o grupo preposicional «de ciência» em «livro de Ciências». No entanto, na mesma gramática, na página 342, a mesma autora considera, com o exemplo «livros de história», o grupo preposicional, como complemento de livros, ilustrando com a agramaticalidade de «*Os meus livros li de história» em comparação com «Livros de história, li os meus».

Nem todos os investigadores incluem o grupo preposicional em apreço nos complementos. Não o fez Anabela Gonçalves na acção de formação sobre a Terminologia Linguística apara o Ensino Básico e Secundário (TLEBS), que teve lugar na Universidade de Lisboa, em 2005. Esta investigadora dá como exemplo de modificador do nome o grupo nominal «os livros de Francês».

Perante o exposto...

Pergunta:

Qual é a forma do presente composto com o verbo haver das seguintes frases escritas com o verbo ter?

«Tenho estudado demais ultimamente.»

«Ela tem feito de tudo para passar no vestibular.»

«Não temos conseguido estudar tanto quanto gostaríamos.»

«Já que vocês têm se comportado muito bem, merecem um prêmio!»

Obrigada!

Resposta:

Os tempos naturais, como lhes chamam Cunha e Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo, são três: presente, pretérito (passado) e futuro. Destes três, apenas dois, pretérito e futuro, se conjugam como tempos compostos. Por essa razão, os tempos que apresenta não pertencem ao presente mas sim ao pretérito prefeito composto do indicativo.

Dizem-nos as gramáticas que, no caso do tempo em causa, ou seja, no pretérito perfeito composto do indicativo, o auxiliar pode ser ter ou haver (raro). Dizem-nos também que o auxiliar está no presente e o verbo principal no particípio passado, independentemente de o auxiliar ser ter ou haver (embora haver tenha caído em desuso).

Assim, se substituirmos o presente do verbo ter e colocarmos o presente do verbo haver, teremos o pretérito perfeito composto do indicativo, conjugado com o verbo haver:

«(Eu) hei estudado demais ultimamente.»

«Ela há feito de tudo para passar no vestibular.»

«Não hemos (havemos) conseguido estudar tanto quanto gostaríamos.»

«Já que vocês hão se comportado muito bem, merecem um prêmio.»

Pergunta:

[A respeito da resposta 28 594], não seria melhor usar o conjuntivo/subjuntivo («Embora não seja»)?

Resposta:

A conjunção embora tem uma flexibilidade, digamos assim, maior do que, por vezes, os manuais de gramática reconhecem ou apresentam. Na verdade, se ocorre maioritariamente com conjuntivo, construções em que surge seguida de gerúndio, de particípio, de adjectivo e, mesmo, de infinitivo são comuns e aceites pela norma. Pode ainda ocorrer numa posição que não é o início absoluto da oração como pode ver-se no exemplo 6:

1. «Embora atrasada, ela fez um trabalho brilhante.»
2. «Embora satisfeita, não deixou de assinalar alguns aspectos negativos.»
3. «Embora estando escuro, decidi ir ao jardim.»
4. «Embora sem estar presente, a sua opinião foi respeitada.»
5. «Embora não sendo um nome comum, Aziz faz parte da lista de nomes admitidos em Portugal.»
6. «Não sendo embora um nome comum, Aziz faz parte da lista de nomes admitidos em Portugal.»
7. «Não sendo um nome comum, Aziz faz parte da lista de nomes admitidos em Portugal.»
8. «Embora fazendo parte da lista de nomes, Aziz não é um nome comum.»

 

A título de curiosidade, devo dizer que a frase que escrevi é muito interessante, não por ter o verbo no gerúndio, mas pelas características da frase complexa no seu conjunto. Nas frases complexas em que há uma subordinação concessiva, há, habitualmente, uma ideia de contraste, ou de contraposição, entre a subordinante e a subordinada. Ao enunciar-se a subordinante, o receptor da mensagem tem tendência para prever uma conclusão que é desmentida pela concessiva. Ilustro com a frase 5 que inicia a resposta em apreço. Ao afirmar que «Aziz faz parte da lista de nomes admitidos em Portugal», o receptor da mensagem poderá pensar que se trata de um nome comum. Porém, a oração concessiva desmente, ou contraria, esta possibilidade, ao afirmar que não é um nome comum. Este facto levou Evanildo Be...

Pergunta:

Nas frases:

«Os débitos devem ser corrigidos.»

«Os compromissos não podem deixar de ser cumpridos.»

Os verbos principais seriam expressos, respectivamente, pelas locuções «ser corrigidos» e «deixar de ser cumpridos»? E quanto aos núcleos dos predicados verbais das frases, incluem as locuções verbais inteiras (devem ser corrigidos; podem deixar de ser cumpridos)?

Grato.

Resposta:

O verbo principal é, por princípio, um só. Pode ocorrer simples, ou em locução, associado, neste caso, a um auxiliar, podendo haver diversos níveis de complexidade nas locuções. Vejamos as frases uma a uma:

1. «Os débitos devem ser corrigidos.»
1.1. «Eles devem fazer o trabalho hoje.» 

Nesta frase temos dois auxiliares distintos. Um auxiliar de passiva, o verbo ser, que se associa directamente ao verbo principal, que está no particípio passado (como é comum na passiva). Por sua vez, esta passiva está sujeita a uma modalização aspectual de obrigatoriedade ou de possibilidade (o que só se esclareceria num contexto alargado que a frase, tal como está, não permite).
É esta sujeição, digamos assim, que justifica o infinitivo do auxiliar da passiva, uma vez que está incluído na construção exigida pelo verbo modalizador devem. Ou seja, a carga da concordância ocorre no primeiro auxiliar: o auxiliar aspectual devem. Neste contexto, o verbo dever é seguido por preposição e por um verbo no infinitivo, ser. Repare-se em 1.1, em que o verbo principal está na voz activa. Por sua vez, o verbo ser, apassivante, condiciona o modo do verbo principal, implicando que esteja no particípio passado. Na análise, temos, pois, dois níveis, que nos permitem a análise de dois verbos de cada vez: «devem ser», possibilidade ou obrigatoriedade, e «ser corrigidos», passiva.

2. «Os compromissos não podem deixar de ser cumpridos.»
2.2. «Eles não podem fazer o trabalho hoje.» 

Na frase 2, acresce um novo nível de análise associado ao verbo modalizador de possibilidade ...

Pergunta:

Em diversas leis brasileiras é corriqueiro o uso indistinto ora da expressão:

1 – «As medidas mais apropriadas para a gestão do sistema, com vista à melhoria da qualidade da educação básica...»

ou

2 – «Firmar contratos, acordos ou termos de parceria com vistas à realização de obras e serviços de engenharia...»

Assim, nos exemplos supracitados, qual a expressão correta, e também esclarecer quanto ao uso da crase.

1– «Com vista à», ou «Com vista a»?

2 – «Com vistas à», ou «Com vista à»?

Resposta:

O uso da expressão «com vista a» – ou, melhor, a sua estrutura – parece divergir entre Portugal e Brasil. Numa pesquisa pelo Corpus do Português, introduzindo a expressão com variantes, obtive os seguintes resultados:

«Com vista a»: Portugal, 134; Brasil, 3;

«Com vistas a»: Portugal, 0; Brasil, 24;

«Com vista à»: Portugal, 96; Brasil, 1;

«Com vistas à»: Portugal, 1; Brasil, 24.

Numa pesquisa Google, o número de ocorrências é muito mais elevado, mas verifica-se, do mesmo modo, uma prevalência da expressão «com vistas a» no Brasil.

Assim, poderemos dizer com algum rigor que a expressão «com vista a» está a adquirir, sobretudo no Brasil, a forma «com vistas a».

Quanto à presença ou não do acento, tudo depende do contexto em que surge a expressão. Se a palavra que a segue for acompanhada pelo artigo definido feminino (singular ou plural), ocorre a crase e surge o acento. Do mesmo modo, se a palavra for masculina e for igualmente antecedida de artigo, a forma passa a ser «com vista ao/aos», dando-se, de igual modo, a crase.