Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Que palavras além de dâblio têm um â (a com acento circunflexo) antes de consoantes não nasais?

Resposta:

É de facto o único caso em que a vogal a é fechada e não é seguida de consoante nasal.

Note-se, porém, que dâblio – «vê duplo, vê dobrado», adaptação do ingês double u, com o mesmo significado–, é, com acento circunflexo, uma grafia exclusiva de Portugal (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Além disso, a forma dâbliu, também com acento circunflexo, mas u final, encontra registo, por exemplo, no Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958), de Vasco Botelho de Amaral, que a considerava «designação inglesada da letra W».

Nas fontes brasileiras, as formas registadas são dáblio e dábliu, portanto, com á marcado com acento agudo, conforme se escreve no Dicionário Houaiss, que  acolhe ainda a variante dabliú, com acento no u final (ver igualmente o dicionário Michaelis).

Pergunta:

Quando estabelecemos os pontos de uma ordem de trabalhos, os mesmos podem ser indicados em numeração romana (i, ii, iii, iv)?

Agradeço muito o vosso esclarecimento.

Resposta:

A numeração romana – em minúsculas, como se exibe na pergunta1 – costuma usar-se em subalíneas, e não diretamente na divisão de um texto por secções ou na enumeração dos pontos de uma ordem de trabalhos. Neste último caso, o emprego mais corrente é com algarismos árabes.

Por exemplo, de acordo com o Guia de Legística para a Elaboração de Atos Normativos da Assembleia da República (p. 54), as alíneas são indicada por letras minúsculas e as subalíneas pela numeração romana em minúsculas. O critério é semelhante no Código de Redação Interinstitucional para uso do português nas instituições europeias, na secção dedicada à apresentação de enumerações, como é o caso da lista que constitui uma ordem de trabalhos:

«Os pontos de uma enumeração são numerados utilizando letras minúsculas seguidas de um parêntese para o primeiro nível, numeração romana em minúsculas seguida de um parêntese para o segundo nível e algarismos árabes seguidos de um parêntese para o terceiro nível. Os travessões são utilizados para o quarto nível:

    A presente diretiva aplica-se:
    a)
    […]:
    i)
    […]:
    1)
    […]:
    —
    […].

Excecionalmente, [...] os pontos são numerados utilizando algarismos árabes seguidos de um parêntese para o primeiro nível, letras minúsculas seguidas de um parêntese para o segundo nível e numeração romana seguida de um parêntese para o terceiro nível.»

Por outras palavras, não é hábito empregar a numeração romana no primeiro nível de enumeração, nem nu...

Pergunta:

No Brasil é muito comum dizer «igual eu» no sentido de «como eu» ou «como a mim». E também é muito comum o uso da figura de estilo elipse. Como exemplo, o emprego destes hábitos em uma frase seria:

«O João fala errado igual eu falo.» → «O João fala errado igual eu.»

Gostaria de saber se na variante do português de Portugal é incorreto este uso e, se sim, qual a forma correta de serem ditas frases como estas?

– O João fala errado igual eu. (O João fala errado igual eu falo.)

 – Ele pensa igual eu. (Ele pensa como eu.)

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de um uso do Brasil que não parece ocorrer em Portugal – pelo menos, entre os falantes da variedade europeia.

Com efeito, atesta-se o uso conformativo de igual, equivalente a como e seguido de substantivo: «Ele come igual porco», «Maria sempre me tratou igual filho» (Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, 2004). Igual pode também introduzir orações: «Andava de lá para cá, igual estivesse numa jaula» (Dicionário Houaiss)1.

Estas fontes não apresentam abonações de igual seguido de pronomes, mas o Corpus do Português evidencia que o uso conjuncional se associa a pronomes na forma de sujeito, no que parece configurar construções em que se omite o verbo (elipse):

(1) «Nesse sentido, o automatizado é a melhor coisa para quem pensa igual eu [penso].»

Não obstante, em Portugal, prefere-se a construção com como:

(1) O João fala mal como eu. (em Portugal, não é habitual «falar errado»)

(2) Ele pensa como eu.

Acrescente-se que dicionários elaborados em Portugal (Academia das Ciências de LisboaInfopédia e Priberam) não registam igual com valor conformativo.

 

1 No

Pergunta:

Tenho visto algumas vezes escrito:

«Ele tem vinte e tal, cento e tal, setenta e tal anos, a fé tem setenta e tal repartições, etc.»

Às vezes: «tenho vinte e algumas mangas»

A minha questão é:

1. Será que está certo dizer-se: «setenta e tal anos», ou «setenta e alguns anos»?

2. Qual é a designação de um número desconhecido entre 3 e 10 ou 3 e 9? Por exemplo tenho 70 e um acréscimo de canetas, porém, não sei se é 73, ou 77, ou 75, ou 79. Será que também diria por exemplo, «tenho setenta e tal»? Em árabe diz-se biḍʿ (todo o número compreendido entre 3 e 10).

Obrigado.

Resposta:

O uso de «e tal» com numerais quantificadores só ocorre no discurso mais informal, justamente pela falta de exatidão1. Por outras palavras, está correto dizer «setenta e tal anos», mas esta é uma maneira de dizer que não deve ocorrer num texto formal.

É também correto dizer «tenho 70 e tal canetas», mas, como foi dito, só no registo informal.

Quando se diz «... e tal» não é possível definir a quantificação exata, mas geralmente esta pode corresponder a um valor igual ou superior a 5.

Quando a quantificação não vai além de poucas unidades (até 3, por exemplo, mas pode variar, pois a referência em mente é muito imprecisa), diz-se «70 e poucos» quando se fala em idade: «tem setenta e poucos anos» será interpretável sempre em função do contexto, podendo referir-se a idades entre os 71 e os 73/74 anos (eventualmente 75 anos).

Falando de idade, é ainda possível empregar expressões como «vinte e alguns anos»2:

(1) «Acho-me há vinte e alguns anos ligado à mulher que não devia ser minha» (Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo, in Corpus do Português).

Note-se, porém, fora do contexto em que o tema da idade é relevante, parece estranho (pelo menos, para quem aqui escreve) referir a construção a coisas: ?«tenho vinte e algumas mangas»; ?«arrumei vinte e alguns casacos».

 

1 No Dicionário Houaiss, regista-se «e tal» como subentrada a tal e assinala-se a expressão como um uso de Portugal: «2 Regionalismo: Portugal. usado para designar um número indeterminado que excede um número redondo; poucos, tantos. Ex.: viveram juntos duas décadas e tal.»

2

Pergunta:

Vi um vosso comentário sobre «alguns provérbios alusivos à água», quando procurava a explicação para um sobre o mesmo tema que não constava daquela lista.

É ele o seguinte: «Na água turva é que se apanha o "bargue”».

Por mais voltas que desse não encontrei a palavra "bargue".

Antecipadamente muito obrigado pela ajuda.

Resposta:

Deve ser erro ou (havendo uso consistente) uma variante de bagre (cf. Infopédia), palavra que denomina várias espécies de peixes, ao que parece, todos pertencentes à ordem dos siluriformes, os quais se caracterizam pelos barbilhos que têm à volta dos maxilares.

No provérbio, a referência a «água turva» parece ser uma alusão ao hábito de estes animais se encontrarem no fundo dos rios, onde a visibilidade pode ser menor. O sentido é claramente metafórico – as situações difíceis podem ser boas oportunidades – e pode também entender-se como uma crítica e um aviso: os oportunistas aproveitam-se sempre da confusão.

Não foi possível confirmar com precisão a origem africana deste provérbio ou desta máxima.