Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na obra Auto da Lusitânia, de Gil Vicente, a abordagem do tópico acima apresentado é lógica na relação de Sol e Lisibea?

Coloco esta questão, visto que na obra não surgem grandes indicações quanto a este relacionamento.

Aliás, com a leitura da segunda parte da farsa em análise, apenas se sabe que do amor de Sol e Lisibea resulta o nascimento da belíssima jovem Lusitânia...

Agradecia um esclarecimento quanto a esta questão!

Resposta:

O tópico em questão é já do domínio dos estudos literários mais especializados.

Mesmo assim, sugere-se a leitura de um trabalho muito interesante do prof. Thomas F. Earle sobre este auto1, onde este especialista observa o seguinte:

«Lusitânia é filha do Sol e de Lisibea, ela própria o produto da união de um príncipe marítimo e de uma ‘rainha de Berbéria’, portanto, do norte da África. Segundo nos diz Graça Videira Lopes num artigo recente e, antes dela, também José Cardoso Bernardes, Lusitânia associa-se claramente com Lisboa e com o destino marítimo de Portugal. Portugal, porém, o seu pretendente, pertence à terra e à actividade varonil da caça.»

A simbologia das uniões amorosas das personagens em questão é, portanto, uma alegoria2 das origens do reino de Portugal.

 

1 Thomas Foster Earle, "DesafIos e novos camInhos nos estudos vIcentInos: o Auto da LusItânIa", Veredas 23, Santiago de Compostela, 2015, p. 153.

2 Transcreve-se a definição de alegoria do Dicionário Terminológico (recurso para apoio do estudo da língua nos ensinos básico e secundário em Portugal): «No seu significado etimológico, alegoria significa dizer uma coisa por outra, representando figurativamente um conceito ou uma abstracção (e, sob este ponto de vista, aproxima-se da personificação). Assim, a justiça é representada alegoricamente por uma mulher de olhos vendados que segura uma balança na...

Pergunta:

Por que se dá preferência ao ç em palavras de origem indígena?

Ex.: Piraçununga, juçara e açaí.

Resposta:

A preferência1 por ç (antes de a, o, u, sempre no meio de palavra) ou c (antes de e e i, em qualquer posição) tem que ver com o facto de o som incluído nessas palavras ser parecido ao som que nos séculos XVI e XVII se escreviam com ç ou c (este, como se disse, antes de e e i). Em português, tratava-se da chamada sibilante pré-dorsal, que hoje é a maneira normal de pronunciar qualquer /s/ na maioria das variedades do português.

Um artigo do filólogo R. F. Mansur Guérios ("Transcrição portuguesa de um fonema tupi", Revista Letras, 29, 1980, p. 131) apoia o que atrás foi dito: «A representação gráfica c (ce, ci), ç apoia-se, de modo inconteste, na articulação de um fonema tupi, uma africada sibilante surda, [...]. Ora, sucede que também no português arcaico havia esse fonema, símile ao tupi, e fazia-se, portanto, distinção entre c (ce, ci), ç e s (ss).»

Note-se que, nos referidos séculos, o s de saber e os ss de assar representavam uma fricativa apical, um som sibilante que não se pronunciava do mesmo modo que o som representado pelo ç de caça ou o c de aceitar (ver Textos Relacionados).

 

1 No começo de palavra e seguido de a, o ou u, escreve-se sempre s, uma vez que, de acordo com os princípios da ortografia do português, não há palavra com...

O léxico do combate aos incêndios florestais
A vaga de calor de julho de 2022 em Portugal

Alguns termos e expressões mais correntes na comunicação pública a respeito da grave crise dos incêndios florestais e rurais em Portugal, sobretudo nas regiões do Centro, durante a intensa e prolongada vaga de calor da primeira quinzena de julho de 2022.

Pergunta:

Um "conceito" de algo (seja o que for) é, por definição, singular... Assim, sendo religião um conceito antropológico, admitir o plural "religiões" será erróneo...

Resposta:

Sem prejuízo da análise crítica do conceito de religião, não está errado, do ponto de vista estritamente linguístico, empregar o plural religiões, porque religião também se define como «doutrina» – «cada uma das diferentes doutrinas humanas que propõem uma explicação para a origem, ordenação e destino do universo» (Infopédia).

Sendo assim, sabendo que se distinguem termos como cristianismo, islamismo ou budismo como denominações de diferentes doutrinas religiosas, é legítimo empregar religiões.

Pergunta:

«Estamos a contar que ele chegue ao aeroporto cedo» ou «Estamos a contar com que ele chegue ao aeroporto cedo»? O «com» é necessário? De outro modo, o sentido de contar não será diverso?

Obrigado, desde já.

Resposta:

O com, que é uma preposição, é possível, mas não é necessário.

Se a preposição for omitida, como muitas vezes acontece, não há diferença semântica. Na verdade, a Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 1870-1872) evidencia a possibilidade de o verbo contar, no sentido de «esperar, acreditar», poder usar-se sem a preposição com antes de uma oração completiva (exemplos retirados da fonte referida):

(1) «O Pedro conta com [que eles venham por volta das dez].»

(2) «O Pedro conta [que eles venham por volta das dez].»

A frase 2 mostra que a omissão da preposição com não lhe retira gramaticalidade.