Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor
<i>Assadas</i> ou <i>grelhadas</i>?
Uma questão de sardinhas

Numa ementa lê-se «sardinhas grelhadas», o que suscita interrogações e dúvidas, porque a expressão corrente é «sardinhas assadas». Este é o mote do apontamento do consultor Carlos Rocha sobre as relações entre verbos grelhar e assar no tocante a preparar sardinhas, carapaus ou bacalhau.

Pergunta:

Em época de Festa Junina, surge-nos um dúvida: é comum que, durante as festividades de quermesse e quadrilha, haja uma brincadeira de «recadinhos amorosos entre os participantes».

E é justamente sobre o nome de tal brincadeira que reside a nossa dúvida. Como se chama?

"Correio elegante" ou "correio-elegante"?

Desde já, prévios agradecimentos.

Resposta:

Pode escrever-se com ou sem hífen: «correio elegante» e "correio-elegante".

Dicionário Michaelis regista a expressão sem hífen: «Correio elegante, Regional (São Paulo): bilhete trocado entre jovens, entregue por um portador, comum em festas populares, especialmente em quermesses, em geral de cunho amoroso.»

Dicionário Unesp do Português Contemporâneo apresenta a expressão como um composto gráfico, ou seja, com hífen: «correio-elegante [...] bilhete, geralmente de amor, trocado entre jovens em festas folclóricas e quermesses.»

Casos como estes, em que um substantivo e um adjetivo estão associados, nem sempre têm escrita estável e podem, portanto, oferecer variantes ortográficas.

Pergunta:

Na carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel, segundo parece, lê-se o seguinte:

«A feição (dos índios do Brasil) é serem pardos, um tanto avermelhados [...]. Os cabelos deles são corredios […]. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarela […] mui basta e mui cerrada que lhe cobria o toutiço e as orelhas.»

Qual o significado de solapa?

Resposta:

O significado que Pero Vaz de Caminha (1450-1500) dá a solapa não é claro, mas parece tratar-se de um uso especial da palavra, aplicado a uma parte do corte de cabelo dos nativos que o autor descreve.

O historiador Jaime Cortesão, na sua edição do texto de Caminha, a Carta do Achamento do Brasil, sustenta o seguinte1:

«[...] A solapa tem que ser qualquer coisa alheia ao crânio, propriamente dito, mas ligada a ele; e outra não pode ser que uma parte da cabeleira natural. (...) supomos que a solapa era a parte do cabelo que caía sobre a testa e sobre a parte restante do crânio rapada, que lhe ficava por debaixo. Esta maneira de cortar o cabelo era usada no século XV, tanto por seculares como religiosos. [...] Em resumo: o mancebo tupiniquim descrito por Caminha, tinha o cabelo rapado por cima das orelhas, e, recobrindo a parte depilada, curtas madeixas, sob cuja parte inferior, trazia colada, de fonte a fonte e caída para trás, uma cabeleira de penas, que lhe tapava as orelhas e o crânio.»

Por outras palavras, solapa, que geralmente significa «aba de casaco, capa», significava algo um pouco diferente na Carta, ainda que mantendo a noção de «capa»: «madeixa que cai sobre uma parte rapada do crânio, escondendo-a».

 

1 Citações recolhidas numa página intitulada Notas, na plataforma Angelfire.

Pergunta:

Gostaria de saber informações históricas e linguisticas mais detalhadas sobre a etimologia da palavra melancia.

Até o momento encontrei as seguintes informações:

«Do árabe balansia, "valenciana", pelo português antigo balancia e belancia [= melancia], por influência de melão.»

«ETIM(1609) balancia, belancia (f. arcaica ainda us.), prov. termo africano ou do árabe, com infl. de melão.»,

«Etymology. Alteration of balancia (“watermelon”), influenced by melão (“melon”), from Arabic بَلَنْسِيّ (balansiyy, “Valencian”).»*

Qual seria exatamente a relação de melancia com valenciana/valencian? Teria alguma relação com o dialeto árabe de Valência?

Agradeço desde já.

 

[* N. E. – Informação do Wiktionary. Tradução: «Etimologia. Alteração de balancia (“melancia”), influenciada por melão, do arábico بَلَنْسِيّ (balansiyy, “valenciano”).»]

Resposta:

A informação recolhida pela consulente encontra-se de facto na Infopédia, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e, associada a informação sobre o árabe, surge também no Wiktionary. Trata-se de uma etimologia plausível e aceite, mas que ainda deixa muitas dúvidas, que não se encontram por enquanto esclarecidas.

A incerteza sobre a etimologia melancia é manifesta, por exemplo, no comentário que o destacado arabista espanhol Federico Corriente (1940-2020) dedicou à palavra em Diccionario de Arabismos y Voces Afines en Iberorromance (Madrid, Editorial Gredos, 2003):

«melancia (portugués, con la variante balancia) "especie de sandía de origen indio"; a pesar de estar documentada sólo a partir del siglo XVI y de su origen oriental, podería derivar del gentilicio andalusi balansiyyah "valenciana" [...] si tal variedad apareciera mencionada, lo que no parece hasta ahora ser el caso. Tal vez se trate de etimologías populares del andalusí mallísi, corrupción del [árabe] clássico imlīsī "de piel lisa", término botánico y de horticultura muy común» [tradução livre: «melancia (português, com a variante balancia) "espécie de melancia de origem indiana"; apesar de documentada apenas a partir do século XVI e da sua origem oriental, poderia derivar do gentílico andalusi balansiyyah "valenciana" [...] se tal variedade fosse mencionada, o que até agora não parece ser o...

Pergunta:

Se no inglês se pode empregar a palavra unchemical para «não químico», porque é que no português não temos algo do mesmo género, como por exemplo "aquímico"?

Resposta:

Não é impossível "aquímico", porque as regras e os elementos envolvidos na formação de palavras em português permitem criar o vocábulo. O que sucede é que, pelo menos, a avaliar por pesquisas na Internet, o termo se usa muito pouco.

Em português, o prefixo a-, que marca negação, não corresponde exatamente ao inglês un-, também associado a negação. Por exemplo: undressed – «despido, em roupa informal»; unlock – «abrir, desaferrolhar»; un-English – «impróprio do que é ou se espera ser inglês».

Nos exemplos anteriores, não é possível recorrer a derivados com a-, ou porque já existem palavras portuguesas com uso estável, formadas com outro tipo de prefixo (des-, em despido ou desaferrolhar), ou porque se representa a situação com um verbo que não integra a negação (abrir), ou, ainda, porque é necessário recorrer a uma perífrase (ou seja, a uma expressão).

Conclui-se, portanto, que é frequente na tradução nem sempre manter a simetria morfológica e lexical interlinguística, porque o mapeamento entre conceitos ou noções, por um lado, e o léxico, por outro, são diferentes de língua para língua.