Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Olá! Encontrei numa tradução antiga de Odorico Mendes da Odisseia de Homero a expressão "oucos manes".

Pesquisando, encontrei essa mesma expressão usada por Leonor d'Almeida Portugal [Marquesa de Alorna]:

«As terríficas sombras, oucos manes/ Ante ela lugar dão a seus furores.»

Mas "oucos" não existe em nenhum dicionário que consultei.

Há uma nota relacionada a esse verso, em que o editor diz acreditar que seja "ocos manes", pois também não encontrou a palavra "oucos".

"Oucos" poderia ser a grafia de "ocos" dos séculos XVIII ou XIX?

Obrigado!

Resposta:

Será variante ou mesmo erro por oco.

O original grego é nekúôn amemêna kárena, que na tradução da Odisseia por Frederico Lourenço corresponde a «às cabeças destituídas de força dos mortos» (p. 312, v. 521).

É, portanto, legítimo inferir que "oucos" esteja por "ocos", no sentido de «vazios».

Não se tratará de forma correta no século XVIII ou no século XIX, porque o conhecido dicionário de Morais (1789) consigna oco, e não "ouco", com o significado «vão, vazado, não sólido».

O que corre
Locuções prepositivas e águas que passam

Numa notícia de 09/10/2024 do jornal desportivo Record deteta-se um uso equívoco de abaixo, incluído numa locução prepositiva, de enorme estranheza. O comentário do consultor Carlos Rocha.

Pergunta:

É verdade que Coimbra, não tendo pronúncia característica, é considerada como a forma mais correta (ou de referência) de falar português em Portugal?

Resposta:

Trata-se de uma ideia que tinha voga há mais de meio século, mas que tem o seu quê de mítico.

Geralmente, diz-se que o português padrão se elaborou e fixou no eixo Lisboa-Coimbra, ou seja, entre camadas de população com algum privilégio social e que se encontravam ou se deslocavam sobretudo na área da capital política e administrativa, Lisboa, e na capital académica, Coimbra1. Mas a questão da correção em Portugal, tendo base regional, também revela uma dimensão sociológica, o que não é novidade no contexto das línguas europeias e outras.

Assim, a definição da pronúncia-padrão de Portugal envolve de facto Coimbra, mas não se trata de Coimbra no seu todo, tal como nunca foi, neste âmbito, a consideração da pronúncia de Lisboa. Quando se fala de boa pronúncia, fala-se também de Coimbra, porque foi nesta cidade que funcionou durante décadas, se não séculos, a praticamente única universidade do país. Tendo esta realidade em mente, falava-se da qualidade modelar do português de Coimbra, mas com certeza que não se considerava o português popular de Coimbra, o qual geralmente já apresenta características dos dialetos do português setentrional, como seja a chamada troca de "v" por "b" ou betacismo ("bento", em vez de vento). De facto, o que se tinha em linha de conta era o português dos estratos sociais mais elevados, económica, administrativa ou culturalmente, da população de Coimbra.

Apesar de tudo, há uma característica que hoje se mantém como característica da região de Coimbra, mesmo entre membros das elites: a conservação da vogal /e/ em espelho e coelho, ou seja, a conservação do e fechado antes de lh: "espêlho", "coêlho". Esta pronúncia tem hoje menos projeção em Portugal, mas parece manter-se à volta de Coimbra e mais para leste e sul, ap...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma correta de dizer: São Hugo ou Santo Hugo?

Desde já agradecido pela atenção.

Resposta:

Como o nome Hugo começa foneticamente por vogal ("ugo"), seria de esperar santo, como em Santo António, Santa Engrácia ou Santo Ovídio (ler aqui).

No entanto, a verdade é que com Hugo, se usa também são, e a única explicação que aqui se encontra para o facto é a sonoridade mais suave (eufonia) de «São Hugo», que evitará a sequência talvez menos agradável de "tugo", que se ouve em "Santo Hugo".

Pergunta:

Nas regiões do Baixo Alentejo e Algarve é comum ouvir-se as gerações mais antigas referirem-se a uma lanterna de mão como um "focse", ou "fogse" (a pronunciação nem sempre é clara).

Será que a origem do termo vem do latim "focus"?

Resposta:

Não temos uma resposta inequívoca quanto à origem da palavra, que tem registos gráficos variados.

Será uma forma popular relativamente recente (no contexto da longa história da língua portuguesa), resultado da deturpação do nome de alguma marca de lanternas – por exemplo, as lanternas Focus.  Pode também relacionar-se com alguma outra marca, talvez com a forma "Fox". Não se trata, portanto, de resultado histórico direto do latim FOCUS, que em português deu fogo.

Acrescente-se que três dicionários de regionalismos do Algarve ou Baixo Alentejo registam o termo com diferentes grafias:

(1) «Fox: designação generalizada para qualquer tipo de pilha elétrica manual» (Eduardo Brazão Gonçalves, Dicionário do Falar Algarvio, Algarve em Foco Editora, 1996)

(2) «Fócse: lanterna de bolso a pilhas; lente. Ex.: Compade Zé, vô-me andando qu'isto hoje nã há lua e, im anoitecendo, nã se vê quái nada... – Nã s'apequente com isso qu'ê cá impreste-le um fócse que tenho p'ali..."» (Mário Duarte, Glossário Monchiqueiro, Grupo de Dinamização Cultural "o Monchiqueiro", 2016)1

(3) «Foxe, s. m. Lanterna a pilhas (Baixo Alentejo)» (Vítor Fernando Barros e Lourivaldo Martins Guerreiro, Dicionário de Falares do Alentejo, Âncora Editora, 2013)

Dos três registos acima apresentadas, o que se afigura conforme a ortografia é foxe.

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