Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se deve dizer-se «Estou determinado em vencer» ou «Estou determinado a vencer».

Muito obrigado e continuação do bom trabalho.

Resposta:

O Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, de Francisco Fernandes, indica que o adjectivo determinado, na acepção de «decidido», constrói regência com a preposição a, que introduz uma oração subordinada de infinitivo. Existe um uso mais antigo com a preposição de, como se documenta no Novo Dicionário Lello Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho:

«aplicaram-se logo aos alardes seiscentos soldados, determinados de apagarem com sangue holandês a nóda das injúrias passadas» (Vieira, Cartas, Lisboa, Edições Sá da Costa, I, pág. 19).

Creio, contudo, que actualmente se prefere a preposição a, como, de resto, o Dicionário Houaiss atesta («estava decidido a ser cantor»).

Pergunta:

«Na medida em que o professor entrar em contato com a razão de ser de sua existência, haverá influência direta sobre o como desempenha suas funções, sobre o como busca crescimento pessoal nas demais dimensões, humano-interacional, afetiva, ética, técnica e estética.»

Os senhores poderiam me ajudar a entender essa forma de usar a palavra como? Será que está se referindo à forma de fazer algo?

Desde já agradeço vossa atenção.

Resposta:

Como é habitualmente classificado como advérbio e conjunção. Contudo, no contexto em análise, está usado como se fosse um substantivo, sinónimo de modo, maneira, ou forma. Estas palavras podem substituí-lo no contexto em análise, com pequenas alterações sintácticas; exemplos:

a) substantivos modo, maneira, forma seguidos de como enquanto advérbio: «... haverá influência direta sobre o modo como desempenha suas funções, sobre o modo como busca crescimento pessoal...»

b) os mesmos substantivos seguidos de oração de infinitivo: «... haverá influência direta sobre o modo de desempenhar suas funções, sobre o modo de buscar crescimento pessoal...»

O Dicionário Houaiss refere-se a esta conversão, anotando que «como, antecedido pelo artigo o, é freq[uentemente] substantivado em frases do tipo: "o c[omo] e o porquê de todo o debate"».

Pergunta:

Erudito consultor Carlos Rocha,

Adro/átrio, ruga/rua são palavras que têm uso na língua portuguesa atual. Assim também como escala/escada, Bento/Benedito/bendito, -ário/-eiro, etc., etc., etc.

No caso de Cipriano/"Cibrião", ambas originárias do prenome latino Cyprianus, só se usa atualmente Cipriano como prenome de pessoas e também para designar São Cipriano de Cartago, famoso padre da Igreja do século III, sendo Cibrião uma forma arcaica desusada desse mesmo antenome latino, salvo no caso dessa aldeia mencionada, o qual é, sem dúvida alguma, um caso isolado, um arcaísmo que acabou sobrevivendo por sorte, talvez até por conservadorismo.

No caso de Josefo/José, formas provenientes do antenome latino Josephus, a primeira é totalmente desusada atualmente como prenome masculino, sendo José a forma corrente usada por todos. Josefo não sobreviveu nem para designar personagens bíblicas como José do Egito ou São José, pai adotivo de Jesus Cristo. Pode ser que eu esteja enganado, mas se trata de uma aportuguesamento mal feito. A não ser que se prove que, desde sempre em nosso idioma, foi, primeiramente, Flavius Josephus, ou algo parecido, e, depois, Flávio Josefo, aí. sim Josefo seria um arcaísmo que sobreviveu como Cibrião.

Muito obrigado.

Resposta:

Muito obrigado pelas suas observações, mas acho que elas confirmam afinal o que expliquei na resposta em causa. O caso de Cipriano/Cibrão (e não "Cibrião") é certamente o de palavras divergentes, em que uma delas, Cibrão (também se encontra o topónimo São Ciprião), é de facto um arcaísmo. Mas é preciso notar que os topónimos tendem a fixar formas arcaicas, que documentam fases passadas da história da língua. Assim, em contraste com a forma erudita Cipriano, Cibrão indicia uma série de fenómenos fonéticos típicos da fase galego-portuguesa (anteriores ao século XIII):

a) sonorização de consoante surda entre vogal e vibrante (p. ex. -ipr->-ibr- como em Ciprianu- > Cibrão);

b) e queda de -n- intervocálico (*Cibriano > *Cibrião > Cibrão; o * indica formas hipotéticas).

Deste modo se chegou a Cibrão em Portugal e a Cibrán e Cibrao na Galiza.1

O exemplo de Josefo não é propriamente o de um arcaísmo, se pensarmos que, quando se fala de história do português, o termo arcaísmo se aplica sobretudo a palavras medievais com escasso uso na norma-padrão contemporânea. Este antropónimo deve ser antes entendido no contexto da introdução de termos do latim clássico (latinismos) e do grego antigo em muitas línguas europeias, processo que se intensificou no Renascimento. Se consultar o Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, verá que se consignam as formas José e

Pergunta:

Qual o significado conotativo e denotativo do provérbio «Querer é poder»?

Resposta:

Comecemos pelo chamado sentido denotativo, correspondente à seguinte paráfrase:

«O estado psicológico que é designado pelo verbo querer é equivalente às condições que permitem agir.»

Como vemos, por esta interpretação, não se consegue vislumbrar a intenção que subjaz ao provérbio. É, pois, preciso recorrer ao valor mais subje{#c|}tivo das palavras e propor uma interpretação, que acaba por ter alcance moral: «quando existe verdadeira vontade (= querer) de agir, não é preciso pedir licença (= poder), e tudo se consegue.»

Mas o provérbio em questão é ambíguo, e podem ser-lhe atribuídas interpretações diferentes noutros contextos; por exemplo: «a vontade só se realiza se não houver entraves» ou «há sempre limites para o que se quer».

Pergunta:

Anojeiro era o que se chamava no meu tempo de menino ao rapaz que ficava a guardar os bois de trabalho excedentes, enquanto os homens, aos quais se chamava tralhoeiros, iam trabalhar para os campos com os outros bois.

Que origem têm estas duas palavras?

Muito obrigado.

Resposta:

Anojeiro

Este termo é registado por José Pedro Machado no seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Lisboa, Círculo de Leitores, 1991), exactamente com o significado referido pelo consulente: «garoto que guarda os bois que sobram da lavoura». É provavelmente termo derivado de anoja ou anojo, «bovídeo ou novilho de um ano» (ibidem; cf. também J. A. Capeça e Silva, A Linguagem Rústica no Concelho de Elvas, Lisboa, edição da Revista de Portugal, 1947); de «novilho de um ano» a «animal que sobra da lavoura», sugiro um processo de extensão semântica.

Assinale-se que anojo, nesta acepção, não tem origem em nojo ou numa variante deste, anojo. Na realidade, Machado indica que vem do castelhano añojo, que igualmente significa «bezerro de um ano», e tem por base de derivação a palavra año, «ano», alusiva, portanto à idade do animal.

Tralhoeiro

No Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, regista-se tralhoeira como o mesmo que armadilha (regionalismo de Trás-os-Montes), variante de taralhoeira. Esta palavra está atestada no Dicionário Houaiss como dialectismo de Portugal do domínio da arte venatória com o significado de «rede usada na caça aos taralhões» e com a variante taralheira. Há também tralhoada (idem), «trapalhada», que, como regionalismo do Ribatejo, também significa «três juntas de bois, ou três cingéis, que puxam a mesma carreta, zorra, etc.». É, pois, plausível que tralhoeiro deva a formação e o significado ao mesmo radical de tralhoada, «três juntas de bois».