Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber o significado dos seguintes provérbios:

— «A ambição cerra o coração.»

— «Cada cor, seu paladar.»

— «Em tempo de guerra não se limpam armas.»

— «Gaivotas em terra, temporal no mar.»

— «Lua cheia, abóboras com areia.»

— «Não há atalho sem trabalho.»

Obrigada.

Resposta:

«A ambição cerra o coração»: o sentimento de cobiça pode tornar as pessoas insensíveis.

«Cada cor, seu paladar» (variante: «cada gosto, seu paladar»): cada pessoa ou coisa tem as suas características (próximo de «cada qual com a sua mania»).

«Em tempo de guerra não se limpam armas»: em situação de necessidade ou conflito, é preciso usar todos os recursos, mesmo os mais drásticos.

«Gaivotas em terra, temporal no mar» (variante: «Gaivotas em terra, sinal de vendaval»; ver José Ruivinho Brazão, Os Provérbios Estão Vivos em Portugal, Lisboa, Editorial Notícias, 2004): as situações de conflito ou de perigo fazem-se anunciar.

«Lua cheia, abóboras "com" areia»: a forma correcta é «Lua cheia, abóboras como areia»; o provérbio não parece encerrar uma moral, fazendo antes parte de um conjunto de comentários, às vezes com carácter prognóstico, sobre o clima, as estações, o ciclo lunar em relação com as actividades rurais (cf. «Lua nova, muita rama e pouca abóbora», em António Moreira, Provérbios Portugueses, Lisboa, Editorial Notícias, 2003).

«Não há atalho sem trabalho»: uma maneira aparentemente mais simples ou rápida de resolver uma situação pode revelar-se complicada e morosa.

Pergunta:

Um dia desses, no dia 6 de outubro para ser mais exato, uma frase deu na cabeça do Paulo Coelho (eu não faço idéia por que "cargas d´água"), e ele resolveu publicá-la então no Twitter.

Eis a frase:

«Dê poder a alguém, e ele lhe venderá no mercado de escravos.»

Entendi essa frase imediatamente. Mas, por eu ser um estrangeiro no idioma português, estou sempre desconfiado e leio tudo duas vezes. Quando li a frase a segunda vez, o sentido gramatical que dela extraí não bateu em nada com o que entendi na primeira lida.

Depois mostrei a frase para vários brasileiros, e o sentido que esses extraíam dela era 100% de acordo com o meu primeiro entendimento da frase. Depois o Paulo Coelho publicou uma tradução para o inglês, a qual também confirmou esse sentido original da frase.

Reproduzo aqui a tradução de Paulo Coelho para o inglês:

«Empower someone, and he will sell you in the slave market.»

Agora, minha dúvida gramatical e minha segunda lida: eu suponho aqui que no português brasileiro use-se muito o objeto nulo. Ou seja, em vez de reafirmar o complemento direto por um pronome, omite-se este pronome. O objeto nulo é perfeitamente aceitável no português do Brasil? Então, esse não é meu problema com a frase.

Em vez de escrever

«Dê poder a alguém, e ele LHO venderá no mercado de escravos»,

o Paulo Coelho optou então pelo objeto nulo escrevendo:

«Dê poder a alguém, e ele LHE venderá no mercado de escravos.»

Resta saber, então, a quem se refere o pronome lhe. Por mais qu...

Resposta:

A frase em causa não apresenta uma construção de sujeito nulo, é mesmo um exemplo de um emprego dialectal brasileiro que consiste em atribuir a lhe a função de objecto directo. A solução do problema está na própria tradução em inglês, confirmada pelos próprios falantes brasileiros. A frase de Paulo Coelho pode, portanto, ser parafraseada, com reforço do pronome oblíquo, do seguinte modo:

1 – «Dê poder a alguém, e ele o venderá (a você) no mercado de escravos.»

Ou, de forma mais clara, na voz passiva:

2 – «Dê poder a alguém, e você será vendido por essa pessoa no mercado de escravos.»

Trata-se de um uso que não faz parte do padrão culto e que é conhecido, como diz o consulente, por lheísmo, assim descrito pelo Dicionário Houaiss (s. v. lheísmo):

«fenômeno linguístico que ocorre em alguns dialetos (sociais ou regionais, ou ambos) do português do Brasil, que consiste em substituir por lhe(s) os pronomes o(s), a(s) (referentes ao tratamento você, vocês), na função de objeto direto (p. ex.: ele lhe convidou para ir ao cinema?).»

Em nota, acrescenta-se ainda:

«para explicar essa tendência de eliminar da linguagem brasileira as formas oblíquas (l)o(s)/(l)a(s), têm-se invocado já a ação da analogia (A. Nascentes), já razões de ordem fonética (J. Mattoso Câmara Jr.); cumpre notar: a) que o esp[anhol] le(s), da mesma fonte que o port[uguês] lhe(s), foi desde cedo empr[egado] alternativamente com lo(s)/ la(s) — correspondentes ao port[uguês] o(s)/a(s) —, de tal modo que pôde acumular as funções de obj[eto] dir[eto] e de obj[eto] ind[ir...

Pergunta:

Vocês têm conhecimento dos prenomes femininos Irienes e Eleide (e informação sobre origem e significado), ou seriam eles "invenções" brasileiras?

Muito obrigado!

Resposta:

Não encontro registo dos nomes próprios em questão nem no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, nem no Dicionário Etimológico de Nomes e Sobrenomes, de R. F. Mansur Guérios. Verifico que em páginas da Internet há propostas de explicação da etimologia de Irienes e Eleide; tenho sérias dúvidas sobre a sua credibilidade, mas também não posso confirmar que sejam criações brasileiras.

Pergunta:

O que distingue um logograma de um ideograma? Se é que há alguma distinção. Consultei os mais variados dicionários e sítios online e, apesar de a maioria parecer tentar distingui-los, não consegui depois, lendo as definições, perceber o que os distingue de facto.

Resposta:

Encontro a distinção entre ideograma e logograma formulada num sítio de língua inglesa, The History of Visual Communication:

«Um ideograma é mais um símbolo gráfico que representa uma ideia do que um grupo de letras dispostas de acordo com o fonemas da língua falada, tal como se faz nas linguagens alfabéticas. Os exemplos de ideogramas incluem a sinalização para encontrar caminho, como em aeroportos e outros espaços onde muitas pessoas podem não conhecer a língua do lugar em que estão, bem como os números árabes e a notação matemática, que são usados em todo o mundo independentemente de como são pronunciados em diferentes línguas. O termo ideograma é comummente usado para descrever sistema de escrita logográficos como os hieróglifos egípcios e os caracteres chineses. Contudo, os símbolos dos sistemas logográficos representam palavras e morfemas em vez de simples ideias.

Um logograma é um grafema simples que representa uma palavra ou morfema (uma unidade linguística significativa). Este símbolo gráfico contrasta com outros sistemas de escrita, tal como os alfabetos, nos quais cada símbolo (letra) representa principalmente um som ou uma combinação de sons.»1

Assinale-se, porém, que esta distinção não é contemplada em dicionários gerais.2

1 A citação é a minha tradução do seguinte original em inglês:

«An ideogram or ideograph is a graphical symbol that represents an idea, rather th...

Pergunta:

A região de "Ungro-Valáquia" (Europa Oriental) deve ter o seu nome escrito em português assim mesmo, ou seria melhor grafarmos "Húngaro-Valáquia"? O Aulete Digital consiga moldo-valaco e moldo-valáquio como gentílicos de Moldo-Valáquia, antigo principado e berço da atual Romênia, em que o elemento antepositivo é forma reduzida de Moldávia ou moldávio. Como o adjetivo húngaro, extenso, faz também as vezes de adjetivo antepositivo reduzido, creio que provavelmente é ele que devemos usar no caso. Já do topônimo Hungria, penso não haver forma reduzida dele.

Com a palavra o nosso auríssimo Cibedúvidas.

Muito obrigado.

Resposta:

É melhor Húngaro-Valáquia e húngaro-valáquio (ou húngaro-valaco), porque, além de já existir o modelo facultado pelo termo húngaro-romeno (cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa), a forma húngaro- é a que dicionários prevêem que ocorra em compostos (cf. Dicionário Houaiss). As formas "ungro", sem h, e "hungro" estão atestadas em português, mas não são de aceitar no padrão moderno; encontro-as referidas por José Pedro Machado, no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, quando afirma: «[...] os vocábulos húngaro e hungro só os atesto no século XVI [...], mas são certamente anteriores, isto porque Hungria já aparece no XV: "... posto que fosse no reyno d Ungria...", L[eal] Cons[elheiro], capítulo 44 [...]. A var[iante] Ongria em 1512: "... e que elRey d Ongria que já tinha mandado o cardeal ungro..." [...].»