Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao abrigo do AO 1990, debate-se se se deveria grafar "co-herdeiro" ou "coerdeiro". A minha pergunta não é essa, mas está-lhe intimamente ligada e é, por esse debate, inspirada: co + hóspede resulta em "coóspede", ou "co-hóspede"?

Reza o AO 1990 que «Nas formações com o prefixo co-, este aglutina-se em geral com o segundo elemento mesmo quando iniciado por "o"...». O texto não esclarece que fazer quando o segundo elemento começa por "h", e também não é claro o alcance daquela cláusula "em geral", dando a entender que existem excepções.

Resposta:

A razão para, no Brasil, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (São Paulo, Editora Global, 2009, 5.ª edição conforme ao Acordo Ortográfico de 1990 — AO 1990), da Academia Brasileira de Letras (ABL), registar coerdeiro está no facto de existir um conjunto de medidas da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL (VOLP, págs. LI-LIII) que introduz alguns ajustamentos ao AO 1990, entre eles, um que se refere ao prefixo co-:

«9) Excluir o prefixo co- do caso 1.º, letra a, da Base XVI, por merecer do Acordo exceção especial na observação da letra b da mesma Base XVI e por também poder ser incluído no caso 2.º, letra b, da Base II (coabitar, coabilidade, etc.). Assim, por coerência, co-herdeiro passará a coerdeiro

Seguindo este critério (controverso, no contexto do mundo de língua portuguesa), parece-me lógico que se escreva coóspede, até porque no AO 1990 se lê assim (Base XVI, n.º 1, alínea b):

«Obs.: Nas formações com o prefixo co-, este aglutina-se em geral com o segundo elemento mesmo quando iniciado por o: coobrigação, coocupante, coordenar, cooperação, cooperar, etc.»

Este é o critério seguido pelo VOLP da ABL. Resta saber, neste momento, quais as soluções propostas para estes casos pelos VOLP em versão europeia.

Pergunta:

De acordo com as regras de regência verbal, os verbos morar e residir devem apresentar a preposição em posposta ao verbo.

Por exemplo: «Eu moro em Rio Preto.»

Gostaria de saber se essa regra é válida quando me refiro a um bairro, e não a uma cidade. Por exemplo:

«Eu moro em Jardim Maracanã» ou «Eu moro no jardim Maracanã».

Qual construção é correta?

E quando me refiro a um estado como o Acre, por exemplo?

«Eu moro em Santa Catarina» me parece uma construção correta, mas «Eu moro em Acre» soa estranho.

Agradeço desde já.

Resposta:

A pergunta que é feita não tem que ver com os verbos morar e residir, mas antes com o uso de artigo com topónimos. Já aqui nos referimos a este assunto, mas o critério geral é o de usar artigo se o substantivo que designa o lugar ou a região tem origem num substantivo comum: por isso se diz «moro no Rio» (cf. rio), mas «resido em Belém» (Belém é sempre substantivo próprio). No entanto, como já explicámos, há numerosas excepções a este critério, porque ocorrem exemplos contraditórios como «moro no Porto» e «moro em Porto Alegre» ou «moro no Rio de Janeiro» e «resido em Rio Preto». É, portanto, necessário saber qual é o uso corrente que se dá a esses topónimos, o qual pode ter consagrado a falta ou presença de artigo quando seria de esperar o contrário.

Quanto aos exemplos que aponta, direi o seguinte:

1. Não sabendo eu qual é o uso adoptado no Brasil ou na região brasileira, mesmo assim, parece-me correcta a expressão «Eu moro no Jardim Maracanã», mas é de admitir que, por se tratar de um bairro, isto é, uma zona urbana de certa extensão, se tenha disseminado o emprego da expressão sem artigo («estou em Jardim Maracanã»), na intenção de se diferenciar de um eventual Jardim Maracanã («estou no Jardim Maracanã»)1, que é mesmo um jardim, ou de a assemelhar a certos nomes de cidade («moro em S. Paulo»).

2. Apesar de não ter origem num substantivo comum, Acre usa-se com artigo (cf. Dicionário Houaiss, que define acriano «como relativo ao Estado do Acre ou o que é seu natural ou habitante»).

1 Em Portugal, em consonância com o

Pergunta:

A palavra "vantajosidade" existe e está correta? Li essa palavra em vários artigos de direito, no entanto, não a achei no dicionário.

Grato.

Resposta:

A palavra não se encontra dicionarizada, mas consultas na Internet revelam que é usada em textos de natureza jurídica procedentes do Brasil. Embora seja uma palavra bem formada (deriva de vantajoso, tal como solidariedade deriva de solidário), não vejo a sua utilidade, até porque a sua leitura composicional é redundante ou mais propriamente tautológica: se vantajoso é «aquilo que tem vantagem», então "vantajosidade" significa «qualidade/propriedade daquilo que tem vantagem», donde se conclui que tal qualidade só pode ser vantagem. Por conseguinte, recomendo apenas a palavra vantagem.

Pergunta:

Questões sobre aportuguesamento são recorrentes aqui, mas este caso específico me chamou a atenção. Recentemente, o maior portal de comunicação do Brasil perguntou aos seus leitores qual seria a melhor grafia a ser utilizada no site: “twittar” ou “tuitar”, para o verbo correspondente ao ato de postar mensagens no serviço de microblogue Twitter. Quase 80% das pessoas optaram por “twittar”. Podemos aportuguesar as palavras estrangeiras dessa maneira? O termo eleito me pareceu um tanto Frankenstein: nem português, nem inglês. Para mim, melhor seria traduzir o termo para piar, e a única opção aceitável das apresentadas pelo site seria “tuitar”, completamente aportuguesada. O que vocês pensam?

Obrigado.

Resposta:

Apesar de o Acordo Ortográfico de 1990 ter passado a incluir as letras k, w e y no alfabeto português, recomenda-se que elas surjam só em derivados de nomes próprios estrangeiros. Ora, neste caso, o que acontece é que se trata de aportuguesar termos estrangeiros.

Deste modo, há duas possibilidades:

a) Twitter é nome próprio; então, não é obrigatório aportuguesar como nome que é, mas é possível criar um verbo neológico, twittar, que pressupõe um radical "twitt-";1

b) twitter é forma de verbo e nome em inglês (significa «chilrear» e «chilreio»), e, então, é preciso aportuitadatuguesar.

No caso de aportuguesamento (fonético e ortográfico) de twitter, podem propor-se os neologismos tuíter, para o nome, e tuitar, para o verbo, com se usa no Brasil. CfFazer tuitada

1 Leia-se o n.º 3 da Base I do Acordo Ortográfico de 1990: 

«[...] mantém-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes próprios estrangeiros quaisquer combinações gráficas ou sinais diacríticos não peculiares à nossa escrita que figurem nesses nomes: comtista, de Comte; garrettiano, ...

Pergunta:

Tenho ouvido muitas pessoas pronunciarem a forma verbal soltem com o fechado ("sôltem"). Ora, quanto mais não seja por analogia com voltem, penso que se deverá pronunciar com "o" aberto. Estarei errada?

Agradeço desde já a vossa atenção.

Resposta:

Errada não está, porque Rebelo Gonçalves, no Vocabulário da Língua Portuguesa (1967), indica realmente que o o do radical de soltar é aberto na primeira, segunda e terceira pessoas do singular do presente do indicativo e na segunda pessoa do singular do imperativo: s[ó]lto, s[ó]ltas, s[ó]lta.

Mas a verdade é que a minha intuição de falante lisboeta me diz que as referidas formas do verbo soltar têm o fechado (s[ô]lto, s[ô]ltas, s[ô]ltas), enquanto as do verbo voltar o têm aberto (v[ó]lto, v[ó]ltas, v[ó]ltas). Noto também que em dois dicionários relativamente recentes do português europeu se apontam diferenças entre soltar e voltar no que respeita à pronúncia do o da primeira sílaba na forma de referência, que é o infinitivo. Assim:

a) o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa transcreve voltar com o aberto (transcrição fonética: [vɔɫtaɾ]), mas soltar é transcrito com o fechado ([soɫtaɾ]);

b) no Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, são atribuídas a voltar duas transcrições, com o aberto e com o fechado, enquanto soltar só tem transcrição com o fechado.