Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Questões sobre aportuguesamento são recorrentes aqui, mas este caso específico me chamou a atenção. Recentemente, o maior portal de comunicação do Brasil perguntou aos seus leitores qual seria a melhor grafia a ser utilizada no site: “twittar” ou “tuitar”, para o verbo correspondente ao ato de postar mensagens no serviço de microblogue Twitter. Quase 80% das pessoas optaram por “twittar”. Podemos aportuguesar as palavras estrangeiras dessa maneira? O termo eleito me pareceu um tanto Frankenstein: nem português, nem inglês. Para mim, melhor seria traduzir o termo para piar, e a única opção aceitável das apresentadas pelo site seria “tuitar”, completamente aportuguesada. O que vocês pensam?

Obrigado.

Resposta:

Apesar de o Acordo Ortográfico de 1990 ter passado a incluir as letras k, w e y no alfabeto português, recomenda-se que elas surjam só em derivados de nomes próprios estrangeiros. Ora, neste caso, o que acontece é que se trata de aportuguesar termos estrangeiros.

Deste modo, há duas possibilidades:

a) Twitter é nome próprio; então, não é obrigatório aportuguesar como nome que é, mas é possível criar um verbo neológico, twittar, que pressupõe um radical "twitt-";1

b) twitter é forma de verbo e nome em inglês (significa «chilrear» e «chilreio»), e, então, é preciso aportuitadatuguesar.

No caso de aportuguesamento (fonético e ortográfico) de twitter, podem propor-se os neologismos tuíter, para o nome, e tuitar, para o verbo, com se usa no Brasil. CfFazer tuitada

1 Leia-se o n.º 3 da Base I do Acordo Ortográfico de 1990: 

«[...] mantém-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes próprios estrangeiros quaisquer combinações gráficas ou sinais diacríticos não peculiares à nossa escrita que figurem nesses nomes: comtista, de Comte; garrettiano, ...

Pergunta:

Tenho ouvido muitas pessoas pronunciarem a forma verbal soltem com o fechado ("sôltem"). Ora, quanto mais não seja por analogia com voltem, penso que se deverá pronunciar com "o" aberto. Estarei errada?

Agradeço desde já a vossa atenção.

Resposta:

Errada não está, porque Rebelo Gonçalves, no Vocabulário da Língua Portuguesa (1967), indica realmente que o o do radical de soltar é aberto na primeira, segunda e terceira pessoas do singular do presente do indicativo e na segunda pessoa do singular do imperativo: s[ó]lto, s[ó]ltas, s[ó]lta.

Mas a verdade é que a minha intuição de falante lisboeta me diz que as referidas formas do verbo soltar têm o fechado (s[ô]lto, s[ô]ltas, s[ô]ltas), enquanto as do verbo voltar o têm aberto (v[ó]lto, v[ó]ltas, v[ó]ltas). Noto também que em dois dicionários relativamente recentes do português europeu se apontam diferenças entre soltar e voltar no que respeita à pronúncia do o da primeira sílaba na forma de referência, que é o infinitivo. Assim:

a) o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa transcreve voltar com o aberto (transcrição fonética: [vɔɫtaɾ]), mas soltar é transcrito com o fechado ([soɫtaɾ]);

b) no Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, são atribuídas a voltar duas transcrições, com o aberto e com o fechado, enquanto soltar só tem transcrição com o fechado.

Pergunta:

Ao pesquisar na Internet assuntos relacionados com a física quântica, deparei-me com o termo em inglês decoherence, significando perda de coerência entre os vários estados de um sistema quântico. Na tradução para português deparo-me com os termos "decoerência" e "descoerência". Qual dos dois é o mais correcto? Ou são os dois admissíveis, tal como acontece com os sinónimos "demérito" e "desmérito"?

Muito obrigado pela atenção dispensada.

Resposta:

Ambos são aceitáveis, à semelhança do exemplo apontado, mas parece que a escolha de de- ou des- depende, em certos casos, de preferências regionais. Como comenta o Dicionário Houaiss (s. v. de-): «[...] na neologia mais recente, ocorrem voc[ábulos] em Portugal preferentemente em de- ou des-, em contraste com formas brasileiras em des- ou de-, correspondentemente (descodificar/decodificar, descolar/decolar).» Acresce que o prefixo de- ocorre em termos criados por via culta (por exemplo, decapitar), enquanto des- tende a associar-se a palavras de origem popular (descabeçar).

Pergunta:

Gostaria de saber se o termo «digno de nota» é variável.

Por exemplo: «é digna de nota a frequência com que são utilizados os convênios...»

Ou: «é digno de nota a frequência com que são utilizados os convênios...»

Obrigado.

Resposta:

É, porque a concordância de digno se faz com  o sujeito da oração, que, no caso, é «a frequência com que são utilizados os convénios», cujo núcleo é o substantivo do género feminino frequência. Recorde-se que o sujeito pode surgir depois do predicado, por exemplo, em frases em que ocorram predicados formados por um verbo copulativo (ser) e um adjectivo que tenha valor psicológico (preocupante) ou modal (isto é, que exprime permissão, como proibido, ou grau de certeza, como provável):

«A subida do nível do mar é preocupante» = «É preocupante a subida do nível do mar»; «A entrada é proibida a estranhos» = «É proibida a entrada a estranhos».

Assinale-se que, com expressões como «é preocupante/proibido» (por exemplo, «é estranho», «é óbvio»), o sujeito pode ser uma oração: «É preocupante que o nível dos mares suba»; «É proibido fazer fogueiras»; «É óbvio que estamos em crise»; «É estranho estar tanta gente aqui». Estes exemplos mostram que é sempre usado o masculino do adjectivo que tem a função de predicativo do sujeito («preocupante», «óbvio», «estranho»).

Pergunta:

Encontrei por acaso uma referência às "catrinettes". Assim eram designadas em França as mulheres que chegavam ainda solteiras aos 25 anos, e que celebravam a festa de Sta. Catarina. Será esta a origem da "nau catrineta", significando catrineta em gíria náutica antiga uma nau em viagem solitária?

Agradeço o vosso esclarecimento.

Resposta:

A sua hipótese é plausível, mas não encontro fontes que permitam confirmá-la. O mais que pude saber vem no Dicionário Onomástico Etimológica da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado:

«Dimin. de Cat(a)rina? Do fr. Catherine, hipocorístico de Catherine? É o nome do romance, ou xácara, port., talvez o mais célebre em Portugal e no Brasil, baseado, segundo Garrett, no naufrágio da nau Santo António (1565), relatado na História Trágico-Marítima. Alguns historiadores situam a origem do romance no séc. XVII. O seu elemento sobrenatural contribui para tornar esse romance símbolo da navegação e da aventura, considerado Os Lusíadas da poesia popular.»

Na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, regista-se catrina com três acepções: «espécie de roldana, o mesmo que catarina»; «seio de mulher»; e, em náutica, definido de forma pouco clara mas sugestiva como «moitão de ferro manilhado ao chicote duma ostaga singela, onde labora pelo seio um amante de corrente a cujos chicotes manilham os cadernais das betas da ostaga, podendo assim içar-se a vêrga por um ou outro bordo a-pesar-de a ostaga ser singela» (mantive a grafia original).