Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É correto dizer:

«Maria puxou pelo pai»

Ou deve dizer-se «Maria puxou ao pai»?

Resposta:

Se o significado a veicular é o de «ter características semelhantes a alguém; parecer-se com», então o mais correto é «puxar a»: «Maria puxou ao pai.» É o uso registado no Dicionário Houaiss: «herdar características de (ascendentes). Ex.: «puxa ao avô»1.  Além disso, na mesma aceção, igualmente se regista o emprego do verbo sair, na expressão «sair a alguém» (cf. Dicionário Priberam).

Pode também empregar-se «puxar por», na aceção de «estimular, pressionar alguém para fazer alguma coisa» (cf. «puxar por alguém» em puxar no dicionário da Infopédia).

 

1 A referida fonte apresenta ainda, com o mesmo significado, o uso transitivo de puxar: ««puxou o talento do pai».

Pergunta:

«Até aqueles dias» ou «Até àqueles dias»? Porquê?

Muito obrigado pela vossa ajuda de sempre.

Resposta:

Referindo um limite temporal ou espacial, diz-se e escreve-se, em Portugal, «até àqueles dias», tal como se diz e escreve «até às próximas semanas», expressão em que às também exibe acento grave em resultado da contração da preposição a com o artigo as.

Mas grafa-se «até aqueles dias» (sem contração da preposição a), se se pretender dar a até função inclusiva, sem referência precisa a tempo ou lugar: «Andava muito cansado, e até aqueles dias de férias me pareceram esgotantes.»

Pergunta:

Eu gostaria de saber se há algum respaldo da gramática prescritiva para a combinação de duas conjunções (e + mas).

Encontrei isso num verso de Gonçalves Dias: «Nem tão alta cortesia / Vi eu jamais praticada / Entre os Tupis,– e mas foram / Senhores em gentileza.» (I-Juca-Pirama, VII).

Também encontrei outros exemplos:

1. «A ameaça rugiu-lhe no coração e mas a cólera cedeu à angústia e ele sentiu na face alguma cousa semelhante a uma lágrima.» (HelenaMachado de Assis);

2. «Ele aqui abriu a carteira com ares de ricaço, tirou umas notas e mas quis meter nas mãos, dizendo […]» (PauloBruno Seabra).

Seria uma forma mais rara de dizer «…e, no entanto, […]»?

Obrigado.

Resposta:

Não é possível «e mas».

Na verdade, um dos exemplos em questão – o retirado de Helena, de Machado de Assis – contém um erro gráfico, que resulta da troca de ponto e vírgula por e. O que se lê realmente nas frases citadas na consulta é o seguinte:

(1) «A ameaça rugiu-lhe no coração; mas a cólera cedeu à angústia [...].»

Noutro exemplo, o que se lê é uma sequência de e e da contração pronominal mas, resultado do encontro dos pronomes me e as:

«Ele aqui abriu a carteira com ares de ricaço, tirou umas notas e mas quis meter nas mãos» = «... e me quis meter essas notas nas mãos».

Já a abonação que dão os versos de Gonçalves Dias se esclarece pior e pode até parecer apoiar o uso efetivo de «e mas». Não foi aqui possível levar mais longe a justificação de sequência, sobre a qual não se encontraram comentários nas fontes disponíveis.

Cf. Virgula depois do “mas”?

Pergunta:

Tal como em ministro ("menistro"), vizinho ("vezinho"), feminino ("femenino"), etc., existe fenómeno de dissimilação em litígio ("letígio")?

Resposta:

Não se verifica tal fenómeno em litígio mesmo na pronúncia-padrão de Portugal, como indicam as transcrições fonéticas disponíveis na Infopédia – [liˈtiʒju] – e no Portal da Língua – [li.tˈi.ʒju].

Por razões que parecem ainda pouco estudadas, nem sempre se verifica a dissimilação em situações de falsas esdrúxulas que apresentam uma sequência de três sílabas com a vogal [i] por núcleo e que terminam pela sequência átona -io ou -ia: morticínio, orifício, pudicícia, glicínia , embora, neste caso, não se exclua "glecínia" como pronúncia popular. E, como exceção, acresce artifício, mais corrente como "art(e)fício" mesmo na prolação normal.

Pergunta:

Os autores mais antigos falavam sempre em «génio da língua», em ser determinada construção «contra o génio da língua», por exemplo.

Esta visão subsiste ainda hoje?

Muito obrigado.

Resposta:

A ideia de «génio da língua» parece remontar ao século XVII e diz respeito às características que individualizam uma língua por oposição às outras.

Ao que parece, esta ideia associava-se a outra, a de que as línguas eram organismos, com nascimento, maturação e morte, com certa autonomia em relação às comunidades que as falavam. Contudo, sabemos hoje que as línguas são códigos intimamente implicados na cultura das comunidades falantes.

Nada disto invalida a noção de «génio da língua», que pode ainda hoje ser útil para identificar os padrões estruturais e de uso de uma língua.

Sobre o tema, sugerimos uma leitura em inglês, que serviu de apoio a esta breve resposta – trata-se de um artigo do linguista britânico Chris Pountain, intitulado "The Genius of Language", uma palestra dada na Universidade de Newscastle-upon-Tyne, em 28/11/2007.