Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria que me dissessem o que significa a frase «estou com uma rebarba».

Resposta:

A expressão «estar com a rebarba», que pode ser adaptada como «estar com uma rebarba», é um termo do calão e significa «estado deplorável que se segue a uma bebedeira caracterizado por dores de cabeça, achar que há excesso de luz e que todos falam demasiado alto» e tem por sinónimos as expressões «cozer a bebedeira», «curar a bebedeira; ressacar» e «estar com a ressaca; marsugado» (cf. Dicionário Aberto de Calão e Expressões Idiomáticas, versão de 02/12/2022).

Note-se, porém, que rebarba, como termo calão, pode também significar «grande excitação sexual» (ver Afonso Praça, Novo Dicionário do Calão, 2005).

Pergunta:

Descobri um apelido de família que é Serelha. O que significa? Qual a origem?

Muito grato ficaria com eventual resposta.

Resposta:

Nas fontes consultadas1 não foi possível obter informação sobre o apelido em questão.

O mais que aqui se consegue apurar –em páginas da Internet – é que o apelido aparece relacionado com alguma frequência à região compreendida entre Évora e Moura. Um blogue (Divagares, 20/03/2012) regista Serelha como alcunha usada em Santiago do Escoural (Montemor-o-Novo, Évora), mas tão-pouco se pode confirmar que o nome tenha essa origem.

 

1 Consultaram-se a Revista Lusitana, a obra Antroponímia Portuguesa, de Leite de Vasconcelos, o Tratado das Alcunhas Alentejanas e o Dicionário Onomástico Etimológido da Língua Portuguesa de José Pedro Machado.

Pergunta:

Sou um amante de poesia e, a nível nacional, tenho uma grande estima pela arte de Miguel Torga (1907-1995). Defendo que o poema "Sísifo" detém uma profundidade rara e propõe uma conexão imediata às palavras utilizadas. Um poema simples e genial.

No entanto, há uma passagem sobre a qual tenho uma dúvida gramatical:

«Recomeça....

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...»

Os versos «Enquanto não alcances / não descanses» são obviamente inteligíveis, mas a utilização de alcances deixa-me sempre na dúvida sobre se não seria mais correto alcançares. Está correto? Ou demonstra a utilização de licença poética para que os versos rimem emparelhadamente?

Obrigado desde já.

Resposta:

De facto, seria de esperar «enquanto não alcançares», mas, em orações adverbiais temporais, não é impossível, regionalmente ou em textos menos recentes, a ocorrência do presente do conjuntivo.

Encontram-se, por exemplo, abonações literárias deste uso com quando:

(1) «Desta vez, se de um dos lados somente houver sinceridade.. – e será do teu lado, a havê-la somente de um? – recairá sobre o outro todo o peso de irremediável infortúnio; outra causa que me faz estremecer. E quando sejam sinceros ambos, não haverá tantas lutas a travar, tantos obstáculos a vencer?» (Júlio Dinis, Uma Família Inglesa, 1868, in Corpus do Português)

No exemplo acima, o uso mais corrente na atualidade será «quando forem», e não «quando sejam». Contudo, no contexto, quando é também interpretável com o valor de «sempre que», locução que se afigura hoje compatível quer com o presente do conjuntivo, quer com o futuro do conjuntivo, conforme se pode confirmar pela resposta "Sempre que faça = sempre que fizer".

No caso de «enquanto não» com conjuntivo, é possível que haja interferência de uma construção formada por «até que» e registada por Augusto Epifânio da Silva Dias, na sua Sintaxe Histórica Portuguesa (1918, p. 305; mantém-se a ortografia original):

«A uma oração em que se nega que uma acção principie (ou haja de principiar) a realizar-se, não é usual modernamente ligar-se uma oração de até que, e substitue-se até que por enquanto não:

Não louves até que proves. (Provérbio) [...]»

Nesta passagem, observa-se que o presente do conjuntivo se associa à locução «até que». É, p...

Pergunta:

Acabo de ler "busto-relicário".

Nestes casos, o hífen ainda se justifica?

Resposta:

Os compostos formados por dois substantivos continuam a ter geralmente hífen. É o caso de sofá-camaEstado-membro e, portanto, o de busto-relicário.

Estes são exemplos de compostos hifenizados que não têm elementos de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, «constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio», conforme o articulado no n.º 1 da Base XV do AO 90, onde também se apresentam os seguintes exemplos deste tipo de compostos, legitimando-os: médico-cirurgião, rainha-cláudia, tenente-coronel, tio-avô*.

Um busto-relicário é um relicário em forma de busto. Relicário significa «caixa ou cofre, bolsa ou caixilho, onde se guardam relíquias dos santos» (Dicionário Priberam). Por sua vez relíquia é palavra entendida sobretudo em duas aceções: «parte do corpo de um santo» e «qualquer objeto que pertenceu a um santo ou fez parte do seu suplício» (dicionário da Infopédia).

 

* Esta regra mantém o disposto na Base XXVIII do Acordo de 1945.

Pergunta:

José Leite de Vasconcelos, na sua Dialetologia, refere-se ao português dos judeus, mas ele chega a caraterizar o falar dos judeus, apontando particularidades de pronúncia, de vocábulos, de construções, etc?

Muito obrigado!

Resposta:

Leite de Vasconcelos descreve brevemente o português falado pelos judeus na Europa na sua tese intitulada Esquisse d'Une Dialectologie Portugaise (1901), em duas ocasiões:

– quando refere a geografia do português, focando a presença histórica da língua portuguesa nos Países Baixos, na Itália e na Alemanha (Hamburgo e Baviera) – (pp. 19/20);

– e quando descreve as comunidades judaicas de Amesterdão e Hamburgo na passagem do século XIX para o século XX (pp. 195/196).

Na primeira sequência acerca do português dos judeus, depois de dar notícia do seu uso no porto italiano de Livorno, no século XVI, bem como em Amesterdão e Haia até época mais próxima, fala da visita que fez em 1899 às duas cidades neerlandesas e a Hamburgo, na Alemanha, para concluir que a língua portuguesa estava aí praticamente morta, apenas reservada a certas cerimónias. O filólogo português termina com o registo de na Baviera, entre judeus refugiados, se ter falado português até ao século XVIII.

Ao retomar este assunto mais adiante, centra-se no português de Amesterdão, mencionando o número de falantes («uma colónia de cerca de 5000 judeus de origem portuguesa e espanhola») e a conservação de várias expressões – Boaç festaç melhoradas, Boaç entrada [sic] de jejum. Regista também a fala de um judeu de 70 anos, de Amesterdão, não identificado, o qual revelava os seguintes traços fonéticos: o g e o r eram pronunciados à neerlandesa; o s nunca era chiado (Lopes era "Lopeç"); o nh soava aproximadamente como ing, com [ĩ] nasal e o ng do inglês ou do alemão; o lh era articulado como "l-lh". Os apelidos eram também alterados: Teixeira dizia-se "Tecsera" ou "Teicseira", por causa da ortografia.

Sobre o português de Hambur...