Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na canção "Nasci Maria" de Cláudia Pascoal existe um verso que diz: «Até quero ser ressolha.»

A minha pergunta é: qual é o significado de «ser ressolha»?

Resposta:

A palavra em questão parece o feminino de ressolho, que significa «redemoinho», mas que, em certos pontos da região de Aveiro, pode também significar «desmazelado».

Há quem o considere um regionalismo do Norte de Portugal. A verdade é que neste território os falantes não reconhecem o termo como seu, pelo que se consegue apurar nos comentários a uma publicação no Facebook. Falta, portanto, informação sobre «ser ressolha», e a impressão que aqui se regista provisoriamente é a de que se trata de um caso curioso de pseudorregionalismo que está a popularizar-se.

Pergunta:

Qual é o significado de revidendo?

Resposta:

Apesar de não ter entrada nos dicionários gerais aqui consultados, o adjetivo revidendo parece adaptação do latim revidendus, revidenda, revidendum, gerundivo de revideo, «voltar a ver». Como outros vocábulos que exibem essa terminação adjetival latina – examinando ou instruendo1 –, revidendo significa «que deve ser revisto, que deve ser sujeito a revisão».

É termo recorrente em textos jurídicos referentes a situações de contestação ou impugnação de um processo ou de uma decisão. Este uso pode ser confirmado, por exemplo, pela leitura de um acórdão do tribunal da relação de Coimbra, respeitante a um recurso em que ocorre a expressão «acórdão revidendo», interpretável como «acórdão em revisão decorrente de recurso»:

(1) «1. Afirma-se no acórdão revidendo (partindo o mesmo, na completude, de tal pressuposto) que o recorrente (no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra) questionava apenas a qualificação do crime feita que foi como integradora da alínea h) do artigo 132º do CP [...].»

1 Segundo o Dicionário Houaiss, as terminações -ando e -indo (potencialmente -indo) marcam, além do gerúndio, um valor correspondente ao do gerundivo latino, forma adjetival do verbo cuja terminação equivale a «o que deve ser», noção que se associa à do radical verbal. Por exemplo, examinando denota «o que deve ser examinado», e instruendo, «o que deve ser instruído».

Pergunta:

O que significa «ótica de utilizador»?

Vejo essa expressão num curriculum vitae encontrado na Internet que diz:

«Bons conhecimentos informáticos na ótica de utilizador dos programas do Microsoft Office (Word, Excel e Powerpoint).»

Encontrei o significado de ótica no dicionário Infopédia, que é «perspetiva», mas não me faz sentido, quando coloquei esse significado na frase que citei.

Podem explicar-me?

Resposta:

Trata-se de uma expressão que se usa em Portugal em anúncios de oferta e procura de emprego.

Dizer, por exemplo, «procuram-se pessoas com conhecimentos de informática na ótica do utilizador»1 significa que os conhecimentos de informática requeridos ou apresentados se limitam ao uso dos computadores, não sendo necessárias competências mais especializadas, como seja a programação.

Acrescente-se que há registo de expressões como «na minha ótica» e «na sua ótica» equivalentes a «do meu ponto de vista» e «do seu ponto de vista», ou, ainda, «na minha perspetiva» e «na sua perspetiva». Sendo assim, pode dizer-se que «na ótica de» funciona hoje como uma locução, equivalente a «do ponto de vista de» (cf. «ponto de vista» na Infopédia).

 

1 Ou na «óptica do utilizador», com óptica mantendo a ortografia do Acordo de 1945.

2 Cf. Énio Ramalho, Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Na frase seguinte, deve-se utilizar a palavra vida em plural ou bem singular?

«Carlos Moedas disse que se lembrou perfeitamente de um outro incêndio, também em Lisboa, no qual duas pessoas perderam a vida.» (ou «as vidas»?)

Obrigado.

Resposta:

Na expressão «perder a vida», que significa «morrer, falecer (geralmente, num acidente)»1, a palavra vida ocorre no singular, mesmo que se refira a várias pessoas: «Duas pessoas perderam a vida no incêndio.»

De resto, é elucidativo que a consulta de uma coleção de textos como a secção histórica do Corpus do Português (de Mark Davies) faculte vários exemplos de «perder a vida», com vida no singular, e nenhum de «perder as vidas». É verdade que outra secção do mesmo corpus, de textos já contemporâneos, permite detetar instâncias de «perder as vidas» («perderam as vidas»), as quais, não obstante, são em número bastante inferior (15 ocorrências) ao das ocorrências de formas verbais no plural associadas a vida («perderam a vida», 712 vezes).

Em suma, a expressão usa-se com o nome vida no singular, se não sistematicamente, pelo menos, predominantemente.

 

1 «Perder a vida» tem registo, por exemplo no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, onde figura como subentrada das entradas de perder e de vida.

Pergunta:

Qual a versão corretamente bem escrita: "nada por aí além" ou "nada por aí e além"?

Resposta:

A forma que se fixou e que até tem registo dicionarístico é «nada por aí além». É esta a forma correta.

Com efeito, no Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, regista-se a locução «por aí além», abonada com dois exemplos e dois significados: «tu estás enganado a seu respeito, ele não tem uma fortuna por aí além» (= «não é tão rico como pensas»); e saiu de casa e lá foi por aí além» (= «sem destino certo»).

A mesma fonte também acolhe a expressão «não é nada por aí além», que se emprega na mesma aceção do primeiro dos exemplos atrás citados: «o que ele fez não é nada por aí além» (= «não é nada de extraordinário»).