Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na minha aldeia há o termo ucheira como significado de grandes pedras de granito, ao alto, suportando lateralmente um portão ou cancela de entrada para uma propriedade. Não encontro este termo nos dicionários. Será que existe? Tratar-se-á de uma corruptela de qualquer outro termo?

Resposta:

Nos dicionários portugueses que consultei não encontro o termo atestado1. No entanto, sei que se usa em galego; ora, dada a relação estreita entre dialectos portugueses e dialectos galegos, penso termos aqui uma pista importante. E, na verdade, os dicionários galegos consultados registam o termo, com significados muito próximos da descrição dada pelo consulente. Assim:

— no Dicionário E-Estraviz, a palavra aparece definida do seguinte modo:

«(1) Pedra que forma parte das paredes laterais do forno constituindo a primeira fileira.

(2) Pedra da jamba2 das portas e janelas.

(3) Saliente da porta do hórreo3

— no dicionário da Real Academia Galega, lemos uma definição que pouco difere da anterior (a não ser na ortografia):

«ucheira s. f.  1. Cada unha das pedras que forman as partes laterais da boca do forno. A tapa do forno pegábase ás ucheiras con barro. 2. Cada unha das pedras verticais que, postas ós lados dunha porta ou ventá4, sosteñen o lintel. As ucheiras da ventá son de cantería

 

1 Consultei o Dicionário Houaiss, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, o Dicionário de Expressões Populares Portuguesas de Guilherme Augusto Simões.

Pergunta:

Um apelido português é Missel, ou é Misser? Parece que ambos se enquadram bem na ortografia portuguesa, não é?

Por outro lado, este parece ser um sobrenome português que pouco ocorre. Sabeis dizer-me se o mesmo encontra-se ainda em uso? Aqui no Brasil, onde, desde o período colonial, os apelidos portugueses são bastante usados, seja pela imigração de portugueses, seja pela imposição dos mesmos aos índios, seja pela intensa miscigenação de portugueses, negros e índios, da qual resultou o povo brasileiro, este sobrenome parece ser muito raro ou mesmo não existir.

Muito obrigado.

Resposta:

Não encontro atestada a forma Missel em Portugal. Já as formas Misser e Micer aparecem como títulos e não como apelidos, pelo menos, em Portugal. Segundo José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa), trata-se de «fórmula de tratamento usada com italianos», com origem no italiano missere, «ao lado de messere (< mio sire), fórmula de tratamento», parecendo «quase sempre escrito mícer».

Como na Internet não encontro sequer esse apelido em páginas portuguesas, parece-me de sugerir que a origem não é portuguesa, mas terá outra proveniência, que me é impossível identificar por enquanto.

Pergunta:

Vendo a vossa resposta n.º 28 126, pensei em colocar-vos uma questão, que me intriga há anos, e que não sei se já foi colocada aqui.

Existe algum motivo pelo qual a palavra Deus não vem precedida de artigo definido, enquanto «o Diabo» pode vir precedida do mesmo? Engraçado, é que isso acontece também em outras línguas: inglês — God mas «the Devil»; francês — Dieu mas «le Diable».

Obrigado.

Resposta:

Realmente, a palavra Deus, como nome de «ente infinito, eterno, sobrenatural e existente por si só» e «causa necessária e fim último de tudo que existe» (Dicionário Houaiss), nunca vem precedida de artigo definido. Como é sabido, os nomes próprios de pessoas (antropónimos), mesmo o de figuras históricas, podem, em português, ser acompanhados de artigo definido em registos informais («vi o João»; «não li esse livro do Platão»). Contudo, no caso de Deus, impôs-se sistematicamente a formalidade que envolve o respeito por essa entidade, de tal maneira, que mesmo os não crentes usam esse nome próprio sem artigo definido. Será este o motivo desta particularidade, muito embora não a encontre descrita ou comentada em gramáticas, prontuários ou dicionários.

Pergunta:

Na frase: «Ele vive como lhe apetece», retirada da Gramática da Areal, «como lhe apetece» é referido como subordinada substantiva relativa com a função modificador do grupo verbal, «vive». A minha questão reside na análise da dita oração, ou seja, identificação da função sintáctica do advérbio relativo como, das posições de sujeito, de complemento directo, etc. Ou não é possível proceder a uma análise dessa oração?

Obrigada pela vossa atenção.

Resposta:

Só como advérbio relativo conhecemos a palavra onde, mencionada por Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (p. 540), e também referida no Dicionário Terminológico (cf. entrada Advérbio relativo em B3.1).

Orações do tipo daquela a que se refere têm sido chamadas orações conformativas na tradição gramatical brasileira (cf. Cunha e Cintra, p. 540). Em Portugal, a tradição não lhes tem dado a devida atenção, mas, na Gramática da Língua Portuguesa de M.ª Helena Mira Mateus et al. (p. 729-766), aparecem ao lado das orações comparativas num capítulo dedicado às construções de graduação e comparação (p. 729-766).

Seja como for, uma oração conformativa é uma oração adverbial e, como tal, é um modificador do grupo verbal da oração subordinante (neste caso, «Ele vive»).

Quanto à análise da oração em si, temos:

sujeito: «ele» (subentendido)
predicado: «apetece-lhe»

Pergunta:

Seria possível dizerem-me quais os tipos de transformações fonéticas que existem e qual o seu significado?

Obrigado.

Resposta:

O Dicionário Terminológico (DT) considera a existência de dois tipos de mudança linguística na alteração do sistema fonológico e do repertório de unidades fónicas de uma língua:

regular

«Mudança que atinge os sons de uma língua, i. e., mudança fonética ou fonológica, e que parece obedecer a um princípio de regularidade: o mesmo som, numa dada língua, por vezes em contexto fonético determinado, evolui no mesmo sentido em todas as palavras dessa língua durante um certo período.»

irregular

«Mudança que não obedece a um princípio de regularidade. Verifica-se ao nível fonético, sobretudo com dissimilações e metáteses, e ao nível lexical, com as etimologias populares. A etimologia popular é uma forma de mudança analógica.»

Também no DT se inventariam processos fonológicos relevantes para o estudo do português e passíveis de ocorrer num dado estádio de evolução linguística (sincronicamente, na variação de uma dada língua), podendo generalizar-se a uma perspectiva histórica (diacrónica), como adiante se exemplifica (PE = português europeu; PB = português brasileiro):

inserção de segmentos

 

posição inicial (prótese): mandar > "amandar" (dialectos e sociolectos do PE)

 

posição medial (epêntese): FEBRUARIU- > fevereiro<...