Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A minha língua materna é o castelhano porque nasci na Venezuela.

Sempre tive uma curiosidade que é a seguinte:

Qual é a razão para que as letras, sejam femininas em conjunto («as letras») mas quando se designam de forma individual passam a mudar de género («um A», ou «um B»)?

Isto chama a minha atenção porque em castelhano diz-se «las letras» e logo cada uma continua a ser feminina apesar do número «una A» ou «una B».

Muito obrigado.

Resposta:

Tudo depende da tradição criada em cada língua a respeito da palavra subentendida pelas letras quando se usam sozinhas: «la (letra) A» (castelhano) vs. «o (som/sinal) A» (português). Com efeito, ao contrário do espanhol, que subentende sempre a palavra letra, o português segue o francês ao atribuir o género masculino aos nomes das letras, subentendendo a palavra som ou sinal, ou outra equivalente do género masculino: o a, o b, o c; cf. francês — «le a, le b».1 Assinale-se que na primeira gramática de português, a de Fernão de Oliveira, publicada em 1536, já se usa, por um lado, a expressão «letra d» e, por outro, «o g», quando se usa apenas o nome da letra.

1 Um pequeno grupo dos nomes das letras já foi do género feminino: f, h, l, m, n, r, s, x (ver Genre des Lettres). No italiano (ver sítio da Accademia della Crusca), há oscilações que dependem da palavra que se possa subentender (o feminino lettera, «letra», ou os masculinos suono e segno, respectivamente, «som» e «signo»).

Pergunta:

Enviei-vos algumas outras consultas que ainda se quedam sem resposta. São elas: sobre o gentílico de Ruão, sobre o da Dordonha, e também sobre o da Grenobla (francesas) e ainda a respeito do da Cólquida, antigo país situado no Cáucaso.

Elas merecerão ainda a vossa apreciação?

Muito obrigado.

Resposta:

Claro.

Os topónimos em apreço não têm gentílicos de uso generalizado ou fixados em dicionários gerais. Pode-se, no entanto, sugerir a criação de gentílicos seguindo o modelo mais frequente, que é o de empregar o sufixo -ense ou -ês; p. ex., ruanense/ruanês, dordonhense/dordonhês, grenoblense/grenoblês.1

Quanto a Cólquida, o Aulete Digital regista colco, «da Cólquida, antiga província da Ásia Menor; dai natural ou habitante»; como vocábulos sinónimos, o mesmo dicionário acolhe fasíaco ou fasiano, «que diz respeito ao rio Fásis, que banhava a Cólquida; relativo à Cólquida». Outra solução é criar colquidiano, a partir da forma francesa colchidien (ver M. A. Bailly, Dictionnaire Grec-Français, 11.ª edição, s.v. Κολχος).2

1 Apesar de Rebelo Gonçalves registar Grenobla como equivalente vernáculo do francês Grenoble, o certo é que, pelo menos, em português europeu, se usa a forma francesa.

2 Em grego antigo, Κολχος designava o habitante da Cólquida (ver M. A. Bailly,

Pergunta:

«Lá vai o russo e as canastras.»

«Seja russo o cavalo e seja qualquer.»

«Paga o holandês pelo mal que não fez.»

«Ou forca ou índia ou marco de estrada.»

«Pode enganar-se os mandarins, nunca insultá-los.»

Escrevo sobre as nacionalidades nos provérbios e não sei o que querem dizer estes provérbios.

Alguém pode ajudar-me?

Resposta:

Lamento, mas o que vou expor a seguir pouco adianta sobre o significado da maior parte dos provérbios apresentados por duas razões: parecem-me ser pouco usados; as fontes consultadas não esclarecem o seu sentido.

1. «Lá vai o russo e as canastras»

Provérbio registado por José Pedro Machado, em O Grande Livro dos Provérbios (Lisboa, Editorial Notícias, 2005), sem comentários. Como não me é familiar, suponho que se aplique, pelo menos, a duas situações: a) quando alguém vê goradas as suas expectativas; b) como comentário jocoso ou depreciativo sobre uma pessoa ou um grupo de pessoas.

2. «Seja ruço o cavalo e seja qualquer» (e não «seja russo o cavalo e seja qualquer»)

A forma do provérbio que encontro registada também em Machado (op. cit.) é «seja ruço o cavalo e seja qualquer», não tendo que ver, portanto, com o gentílico russo. Penso que não é um provérbio muito frequente, que parece interpretável como «vale tudo».

3. «Paga o holandês pelo mal que não fez»

Deve ser variante de «Como o holandês, pagou o mal que não fez», recolhido por José Ricardo Marques da Costa, em O Livro dos Provérbios Portugueses (Lisboa, Editorial Presença, 2004). Parece equivalente a «paga o justo pelo pecador».

4. «Ou forca ou índia ou marco de estrada»

Não o conheço, nem o encontro registado em dicionários de provérbios.

5. «Pode enganar-se os mandarins, nunca insultá-los...

Pergunta:

Há erro de concordância na frase «Porque de complicado já basta a mudança»?

Resposta:

Penso que a sequência — que não é frase completa — pressupõe esta outra:

1. «... porque para alguma coisa de complicado já basta a mudança.»

Ou seja, a expressão «de complicado» costuma aparecer associada a algo, alguma coisa, quê:

2. «A mudança tem algo de complicado/alguma coisa/um quê/o seu quê de complicado.»

Nesta construção, complicado é um adjectivo usado substantivamente, não tendo, portanto, de concordar com mudança.

Por outro lado, convém observar que estamos perante uma construção que, de certo modo, se cristalizou segundo o esquema: «para [substantivo ou adjectivo] já basta [substantivo]».  Sendo assim, a sequência ficaria melhor com outra formulação — sugiro três:

«... porque para complicada já basta a mudança.»

«... porque para complicação já basta a mudança.»

«... porque para complicações já basta a mudança.»

Pergunta:

Numa frase como «São coisas a respeito das quais não se pode dizer nada», considero que o pronome relativo desempenha a função de complemento nominal. No entanto, minha dúvida se relaciona a locuções prepositivas que contêm palavras como respeito («a respeito de»), relação («em relação a»), etc. Quero saber se, de fato, essas locuções por si mesmas introduzem termos que, ao desempenhar funções adverbiais, também introduziriam um complemento nominal após a última preposição da locução. Transcrevendo frase acima para «Eu não tenho nada a dizer a respeito dessas coisas», posso considerar, aqui, «dessas coisas» como complemento nominal?

Resposta:

Não. Apesar de respeito ser um substantivo, o facto de fazer parte de uma locução prepositiva, «a respeito de», equivalente a sobre, impede a classificação do seu complemento como nominal: «São coisas a respeito das quais não se pode dizer nada.» = «São coisas sobre as quais não se pode dizer nada.» O pronome relativo «as quais» integra assim um constituinte, «a respeito das quais», que tem a função de adjunto adverbial de «não se pode dizer nada».