Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Mais de um aluno veio ao evento.»

«Mais de um aluno vieram ao evento.»

Qual das opções está correta?

Resposta:

Transcrevo o que diz Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 560; foram desenvolvidas as siglas relativas à autoria dos exemplos):

Depois de «mais de um», o verbo é em geral empregado no singular, sendo raro o aparecimento de verbo no plural:

«... mais de um poeta tem derramado...» [Alexandre Herculano, Fragmentos Literários, Rio de Janeiro, Sauer, pág. 155]

«Mais de um coração de guerreiro batia apressado...» [idem, pág. 169]

«Sei que há mais de um que não se envergonham dela» [idem, pág. 169]

A concordância no singular com a construção «mais de um» é confirmada por Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 497) e por Maria Helena de Moura Neves (Guia de Uso do Português, São Paulo, Editora Unesp, 2003).

Pergunta:

Com a entrada em vigor do acordo ortográfico, ortóptica não se deveria passar a escrever ortótica?

Agradecendo antecipadamente a atenção dispensada.

Resposta:

Seria de esperar que se escrevesse ortótica, porque, em Portugal, o segundo elemento constituinte deste composto terá a grafia ótica, perdendo o p mudo, conforme a Base IV, I, alínea c) :

c) Conservam-se ou eliminam-se facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: aspecto e aspeto, cacto e cato, caracteres e carateres, dicção e dição; facto e fato, sector e setor, ceptro e cetro, concepção e conceção, corrupto e corruto, recepção e receção;[...]1

Nesta conformidade, e visto que o p de óptica não tem correspondido à pronúncia de nenhuma consoante, os vocabulários ortográficos portugueses — Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Porto Editora, e Vocabulário Ortográfico do Português (VOP), do ILTEC — registam ótica, e não óptica, como forma a adoptar em Portugal.2

Com ortóptica, no entanto, os vocabulários ortográficos portugueses não aplicam o mesmo critério, porque a forma consignada quer no

Pergunta:

Segundo a base IX, ponto 4, do texto do novo Acordo Ortográfico: «É facultativo assinalar com acento agudo as formas verbais de pretérito perfeito do indicativo, do tipo amámos, louvámos, para as distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo (amamos, louvamos), já que o timbre da vogal tónica/tônica é aberto naquele caso em certas variantes do português.»

Pergunta 1: A colocação facultativa deste acento restringe-se a um determinado espaço geográfico (Brasil, por exemplo), ou é para todos os países lusófonos?

Tenho lido opiniões que defendem que a possibilidade de não colocar este assunto distintivo é apenas para o Brasil. Custa-me a crer que seja assim, uma vez que no Norte (aqui é com maiúscula, não é?) do país é frequente o timbre fechado para ambos os tempos: presente e pretérito perfeito.

Pergunta 2: O Acordo Ortográfico consagra, entre muitas outras, a dupla grafia infeccioso/infecioso. Em Portugal, podemos escolher usar uma ou outra (como em sector/setor)?

Que instrumento de consulta me sugerem para esclarecer, no caso das duplas grafias, qual o espaço geográfico onde se aplica cada uma delas?

Antecipadamente agradecido pela atenção.

Resposta:

O texto do Acordo Ortográfico de 1990 é omisso sobre a distribuição regional de pares de formas facultativas, pelo que se depreende que a facultatividade em causa seja generalizável a todo o espaço de língua portuguesa. Uma opção dos vocabulários ortográficos recentes é registar as duas formas ou dar relevo a uma delas, fazendo acompanhar o outro membro do par de uma nota que o atribui à norma do Brasil. Por exemplo, nas formas de 1.ª pessoa do pretérito perfeito do indicativo dos verbos regulares da 1.ª conjugação, regist{#|r}am-se as duas variantes: cantámos/cantamos (caso do Vocabulário Ortográfico do PortuguêsVOP — do ILTEC).

Quanto ao par infecioso/infeccioso, os vocabulários ortográficos do português europeu seleccionam infecioso: o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Porto Editora regista apenas infecioso, enquanto o VOP apresenta infeccioso como forma brasileira, a par de infecioso, que se depreende seja a forma preferível em português de Portugal.

Os instrumentos de consulta para dirimir estas dúvidas são, claro está, as fontes aqui referenciadas.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem a que se deve a irregularidade da primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo poder (posso), já que em galego não se verifica a irregularidade (podo).

Obrigada.

Resposta:

Trata-se da conservação de parte da irregularidade que se observava em latim, no presente do indicativo do verbo posse, «poder», originalmente um verbo composto: possum, possumus, possunt, mas potes, potest, potestis. O português, em parte como o italiano, manteve a irregularidade na primeira pessoa do singular. Pelo contrário, o galego e o castelhano regularizaram todas as formas de poder, incluindo a primeira pessoa do singular: podo (galego), puedo (castelhano).

Assinale-se que, na Idade Média, no período galego-português, a forma de primeira pessoa do singular do presente do indicativo era posso, de acordo com Manuel Ferreiro, Gramática Histórica Galega (Santiago de Compostela, Edicións Laiovento, 1996, pág. 331):1

«Fronte á forma medieval posso (PŎSSŬM) de P1 de Presente de Indicativo, aparece no galego común podo [ˈpɔdo] (con vocal tónica aberta como quero) ou [pódo], como os verbos semirregulares con alternancia vocálica na segunda conxugación [...], regularización moderna producida a partir do resto do paradigma deste tempo.»

1 Na citação: «P1» = «primeira pessoa»; em [ˈpɔdo] o sinal de acento tónico está no começo de sílaba, por tecnicamente não ser possível colocá-lo sobre a vogal como no original.

Pergunta:

Depois do verbo intransitivo, se tiver elemento que determine circunstância de tempo, modo, lugar, etc., possui um adjunto adverbial e continua sendo intransitivo. Mas se, por acaso, o que vier depois não for circunstância, por exemplo: «O cão latia para o gato»?

Resposta:

Continua a tratar-se de um adjunto adverbial, desta vez com valor de inclinação ou oposição, segundo Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 447):

Adjunto adverbial de inclinação e oposição — São os adjuntos que expressam a relação de "favor", "ajuda" ou "disposição favorável", muito próximo ao valor benefactivo do dativo, bem como as relações contrárias, de "oposição", "disposição desfavorável".

[...] Para a segunda relação, usa-se a preposição contra ou locuções do tipo:

Esforçava-se por lutar contra os maus pensamentos.

Apesar de para não ser propriamente nem uma locução nem um sinónimo de contra, pode considerar-se que a sua associação a latir, que significa «ladrar», se pode interpretar, com recurso ao conhecimento do mundo (ou enciclopédico), como referente a uma «disposição desfavorável» relativamente a alguém ou alguma coisa (neste caso, um gato, tradicionalmente inimigo dos cães).