Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «Ela vendeu artigos de primeira e artigos de segunda», primeira e segunda pertencem a que classe e subclasse de palavras no NPP?

Resposta:

Embora a consulente não indique claramente o significado da sigla NPP, suponho que está a referir-se aos novos programas do ensino básico de Portugal. A classificação das palavras em questão é feita de acordo com o Dicionário Terminológico, uma vez que este documento constitui uma das referências de enquadramento do conteúdo desses novos programas. Sendo assim, e considerando que primeira e segunda ocorrem como elipses, respetivamente, de «primeira classe» e «segunda classe», direi que se trata de adjetivos numerais.

Pergunta:

Cidadão é substantivo.

Também pode ser adjectivo, como diz o Portal da Língua, a Infopédia, etc.?

Desde quando, tal novidade?

Não será cópia/influência do castelhano (ciudadano/a, com efeito, com os dois valores)?

Resposta:

O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, na sua edição de 1991 pelo Círculo de Leitores, regista a forma cidadão quer como substantivo quer como adjetivo. Quanto a o uso adjetival ser resultado de empréstimo do espanhol, nada posso afirmar. No entanto, tal hipótese parece-me pouco provável, tendo em conta que o dicionário de José Pedro Machado tem edições anteriores a 1991 e que, nessa altura, a pressão comercial e linguística de Espanha era, em Portugal, menor do que hoje. Além disso, em textos oitocentistas, encontram-se algumas ocorrências adjetivais da forma feminina, cidadã (frases retirados do Corpus do Português de Mark Davies e Michael Ferreira; mantive a ortografia original):

(1) «[S]em advertirmos, que não ha hoje, nem houve nunca nação alguma verdadeiramente polida, que não fizesse, ou faça consistir o ponto fundamental de uma educação liberal, e cidadã, no apurado conhecimento da sua propria linguagem...» (Francisco Freire de Carvalho, Lições)

(2) «Foi uma indiscrição mandar tocar a campainha. Esqueci-me de prevenir que lhe respeitassem a indolência cidadã.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais)

De qualquer modo, não disponho de dados que confirmem ou infirmem uma  influência castelhana, que, não sendo impossível, teria de ser confrontada com a maior probabilidade interferência do francês, língua hegemónica no plano cultural até princípios do século XX, ou do inglês, hoje língua franca em diferentes domínios de expressão e atividade.

Pergunta:

Uma amiga minha, jornalista e tradutora uruguaia, consultou-me sobre a expressão finca-ratunha («Até parece que é por finca-ratunha!»). Confesso o meu desconhecimento. Podem ajudar?

Resposta:

Trata-se de um provincianismo trasmontano, que quer dizer «de má-fé», «de propósito», «para arreliar».

É assim que a expressão se encontra registada no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado (edição da Sociedade da Língua Portuguesa, 1958). Com a variante, também, «de finca-rabunha», conforme a abonação de Guilherme Augusto Simões no seu Dicionário das Expressões Populares Portuguesas (D. Quixote, 1994), tendo por fonte a edição de 1922 do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo.

Pergunta:

Agradeço-lhes o link que me enviaram, mas a minha dúvida persiste, pois tanto nas linguagens atuais literária e corrente como em vários livros com exercícios gramaticais as formas verbais traze-lo ou faze-lo nao existem, ou seja, usa-se a mesma forma verbal para a segunda pessoa do singular do presente do indicativo e para o imperativo; Trá-lo ou Fá-lo. A título de exemplo cito o livro de Leonel Melo Rosa, Vamos Lá Continuar!, na página 91, exerc. 25:

«Trazes o disco logo à noite?» < «Trá-lo.»

Será que me podem esclarecer?

Resposta:

As formas da conjugação pronominal dos verbos em questão são mesmo traze-lo e faze-lo, na segunda pessoa do presente do indicativo. Na Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 37.ª edição, pág. 265/266), de Evanildo Bechara, e no Dicionário de Verbos Conjugados (Coimbra, Livraria Almedina, 1995, pág. 34/35), nada aponta para que os verbos irregulares trazer e fazer tenham formas diferentes na segunda pessoa do singular, associadas a pronomes átonos de terceira pessoa. Trá-lo e fá-lo são formas da conjugação pronominal, correspondentes à segunda pessoa do singular do imperativo de trazer e fazertraz e faz (antigo traze e faze, respetivamente; cf. Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Na frase «Ela foi muito triste pelo mundo», tendo em conta que o verbo é ir, e não ser, não se tratando portanto de um verbo copulativo, preciso de saber qual a análise sintática de «triste».

Será atributo, ou complemento circunstancial de modo?

Resposta:

Na análise gramatical anterior à que atualmente decorre da elaboração e fixação do Dicionário Terminológico (DT) em Portugal, existia alguma dificuldade em classificar o constituinte sintático em questão, o que poderia levar, em contexto escolar, a classificar o caso de «muito triste» como complemento circunstancial de modo.1 No entanto, mesmo na perspetiva tradicional, embora já aceitando alguns contributos da linguística, Celso Cunha e Lindley Cintra mostram que os predicativos do sujeito não ocorrem apenas com os verbos copulativos, podendo também aparecer associados a verbos significativos, formando com estes aquilo a que esses gramáticos apelidam de «predicado verbo-nominal» (Nova Gramática do Português Contemporâneo, pág. 138).2

Em relação à análise feita na perspetiva do DT, embora este apenas relacione explicitamente o predicativo do sujeito com os verbos copulativos, não é descabido reconhecer que eles também ocorrem com verbos não copulativos.

1  No âmbito da análise escolar mais tradicional, não se trata de um atributo, porque este «se junta imediatamente ao substantivo para o qualificar», conforme estipulam J. M. Nunes de Figueiredo e A. Gomes Ferreira (Compêndio de Gramática Portuguesa, Porto Editora, 1976, pág. 68). O mais que se poderia dizer nessa perspetiva é que «muito triste» era um adjetivo em aposição, desde que na escrita ficasse assinalado ente vírgulas, adjacente ao sujeito: «Ela, muito triste, foi pelo mundo» (cf. ibidem). Mas, na verdade, a gramática de Figueiredo e Ferreira não permitia descrever adequadamente o...