Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Agradecia que me esclarecessem quanto à modalidade epistémica, se a há, nos seguintes enunciados:

«Ulisses era grego.»

«Ela tem 15 anos.»

«A caneta está estragada.»

Segundo observei em alguns espaços, estes enunciados são classificados como epistémicos (valor de certeza).

Contudo, segundo o meu entendimento de modalização, estas frases não estão modalizadas, ou seja, não incluem nenhum elemento modalizador, seja verbal, adverbial, adjetival, de pontuação, enfático ou outro.

Por serem frases assertivas, deverão ser consideradas modalizadas?

Por outro lado, aceitaria que se considerassem no domínio da modalidade alética, pois «o locutor refere-se ao valor de verdade das proposições» (citado de uma outra explicação encontrada aqui). Contudo, esta modalidade não é considerada no Dicionário Terminológico! Como fazer então?

Por fim, como classificam enunciados em que se emitem opiniões? Por exemplo:

«Duvido que estejas certo!»

Resposta:

As frases apresentadas na pergunta incluem um elemento modalizador, o próprio modo das formas verbais que nelas ocorrem.

O valor modal dessas frases está associado ao modo indicativo («era», «tem», «está»), mediante o qual o falante exprime a sua certeza relativamente ao conteúdo da frase que produz. Isto significa que a modalidade também se manifesta numa asserção, mesmo que não ocorra outra marca linguística a não ser o modo verbal. Assim, no caso das asserções, o modo indicativo marca o valor modal de certeza, que é um dos valores compreendidos na modalidade epistémica (o outro que é referido pelo Dicionário Terminológico DT — é o de probabilidade), sendo parafraseável por «Tenho a certeza de que Ulisses era grego»/«Ela tem 15 anos»/«A caneta está estragada» (cf. DT, B.6.4. Valor modal, Modalidade; ver também M.ª Olga Azeredo et al., Da Comunicação à Expressão — Gramática Prática de Português, Lisboa, Lisboa Editora, 2011, pp. 311/312, e Cristina Serôdio et al., Nova Gramática Didática de Português, Lisboa, Santillana-Constância, 2011, p. 232).

Quanto à modalidade alética, há de a consulente reparar que a pergunta e a resposta em questão sugerem um contexto universitário, em que se exige um grau de aprofundamento das matérias que o DT, destinado aos ensinos básico e secundário de Portugal, não tem de abranger (muito embora possa lançar pistas para ulterior pesquisa). Além disso, ao que sei, o termo modalidade alética não faz parte dos programas de Português do ensino básico e secundário, pelo que não vejo necessidade de o abordar nas aulas desses níveis. Mas, caso a...

Pergunta:

A norma diz que o quê tónico vem acentuado. Quando é nome ou está em final de frase, é fácil detectar a tonicidade. Mas tenho sempre dúvidas em casos como:

1. «Renúncia: a que renunciamos?» – usa-se que, ou quê?

2. «mas em que pensava eu quando...» (idem)

3. «Em que renúncia me fez pensar o professor?» (idem)

Pesquisei no Ciberdúvidas, mas não encontrei esclarecimento quando em casos como esses.

Resposta:

As sequências corretas são as seguintes:

1. «a que renunciamos...»

2. «mas em que pensava eu...»

3. «em que renúncia...»

Em 1 e 2, que é um pronome interrogativo. A forma tónica correspondente, quê, não pode ocorrer nesses contextos, uma vez que ela se usa só nos casos seguintes (sistematização com base em respostas anteriores e na pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira):

a) no fim de frases interrogativas parciais: «renunciamos a quê?»;

b) no fim de frases interrogativas, seguidas de oração intercalada introdutora da interrogação: «renunciamos a quê, pergunto?»

c) no princípio ou fim de frase sem verbo ou cujo verbo é um infinitivo, desde que quê não seja complemento verbal: «Para quê tanta gritaria?»/«Tanta gritaria para quê?»; «Para quê chorar?»/«Chorar para quê?» (mas só se aceita «pensar em quê» — nunca «em quê pensar» —, porque «em quê» é o complemento oblíquo de pensar).

Relativamente a c), deve assinalar-se, no entanto, que no português do Brasil se usa para que sem acento circunflexo no começo da frase interrogativa com o verbo no infinitivo (atestações retiradadas do Corpus do Português): «[...] o apanhar o leque que escapa da mão que estremeceu, tudo isso.. mas para que divagações ? Que mancebo há aí, de dezesseis anos por diante, que não tenha experimentado esses doces enleios [...]» (Joaquim Manuel de Macedo, A Moreninha, 1844); «É tu...

Pergunta:

Na gramática tradicional, ainda ensinada aos alunos de 8.º e 9.º anos, torna-se difícil encontrar uma explicação cabal para a definição de verbos transitivos indiretos. Nalgumas publicações é dito que são aqueles que são seguidos por complemento indireto, noutras afirma-se que são os que são seguidos de complemento indireto ou outro complemento iniciado por preposição, e noutras, ainda, diz-se que são os que são seguidos de complemento indireto ou complemento circunstancial.

Gostaria que, se possível, me ajudassem nas seguintes dúvidas:

Nas frases «Ele dormiu bem», «Ele dormiu no sofá» e «Entreguei o livro na biblioteca», que tipo de verbo temos? Estará correto dizer que nas duas primeiras é um verbo transitivo indireto e, na última, um verbo transitivo direto e indireto, pois têm à frente um complemento circunstancial?

Resposta:

De acordo com a terminologia mais antiga, conforme a Nomenclatura Gramatical Portuguesa a fixou em 1967, os verbos eram apenas descritos de acordo com duas categorias, a de verbo transitivo e a de verbo intransitivo. O termo «verbo transitivo indireto» parece de uso mais recente, visto fazer parte do Dicionário Terminológico, que o define assim: «v[erbo] principal que selecciona um sujeito e um complemento indirecto ou oblíquo.»

De qualquer forma, nos exemplos apresentados na pergunta não ocorre nenhum verbo transitivo indireto. Em «Ele dormiu bem» e «Ele dormiu no sofá», o verbo dormir é intransitivo, enquanto «bem» e «no sofá» são ambos complementos circunstanciais na terminologia mais antiga ou modificadores na nova terminologia. Quanto a «Entreguei o livro na biblioteca», ocorre na frase um verbo transitivo direto, entregar, que tem por complemento direto o grupo nominal «o livro», e por modificador, o grupo preposicional «na biblioteca».

Pergunta:

Tenho dificuldade em entender o critério de derivação prefixal, composição e recomposição. Um pseudoprefixo pode ser prefixo ou radical, dependendo da palavra que integra?

Por exemplo: é lícito dizer que em retroceder tenho uma derivação prefixal (porque se manteve a noção de movimento/advérbio), mas em retrovisor ocorre recomposição (e aí ele é pseudoprefixo)? Ou que autodidata seria um processo normal de composição, mas em autoestrada há recomposição, já que ocorreu mudança de sentido em relação ao radical grego?

Vocês me recomendariam alguma leitura a este respeito?

Resposta:

Não é só a consulente que tem dificuldade em distinguir. De facto, não existe um critério que defina com segurança a diferença entre radical, por um lado, e prefixo ou pseudoprefixo, por outro.

Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos, em Inovação Lexical em Português (Lisboa, Edições Colibri/Associação de Professores de Português, 2005, págs. 30-32; mantenho a ortografia original) explicam que «[o prefixo] corresponde frequentemente a antigas preposições e advérbios latinos e gregos» e «tem um conteúdo semântico menos gramatical (e concomitantemente mais facilmente perceptível) do que o sufixo, levando por vezes a situações em que é difícil distinguir entre prefixos e elementos de composição». As autoras deixam ainda a seguinte advertência:

«[...] [O]s prefixos avaliativos colocam alguns problemas de classificação, dado que, na paráfrase composicional dos derivados, estes prefixos equivalem frequentemente a adjectivos e, nesses casos, apresentam um significado que pode considerar-se de natureza lexical, pelo que podem ser considerados elementos de composição. Atente-se na paráfrase composicional de megaconcerto [...] que é "grande concerto". As dificuldades em distinguir os dois processos de construção de palavras [explicam] que, em diversas gramáticas tradicionais, a prefixação fosse incluída nos processos composicionais.»

Também Alina Villalva, em Estruturas Morfológicas (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para Ciência e Tecnologia, 1998, pág. 358), comenta o mesmo problema:

«Não é [...] surpreendente que, na tradição gramatical portuguesa, a prefixação tenha por vezes sido considerada como um tipo de composição [...]. A hipótese que coloco é a de que a...

Pergunta:

No exercício abaixo, retirado de um documento brasileiro, a resposta correta seria a A. No entanto, a resposta D parece-me igualmente correta, porque, como descrito no vosso site: quando o verbo tem complemento preposicional que integra uma frase infinitiva, é possível a construção com lhe.

A dúvida está na forma «escolhem-nas», que quando termina em ditongo nasal assume-se nas, contudo neste caso eu diria «escolhem as suas vítimas.», ou seja, «escolhem-as».

«Entregar todos os seus pertences.» «Os delinquentes escolhem suas vítimas

Substituindo-se os termos grifados pelos pronomes correspondentes, a forma correta será:

A) entregá-los – escolhem-nas

B) entregá-los – escolhem elas

C) entregar-lhes – escolhem-as

D) entrega-lhes – escolhem-nas

E) entregá-los – escolhê-las

Resposta:

A opção certa é mesmo a A, tendo em conta que se pressupõem as sequências «Entregar todos os seus pertences.» e «Os delinquentes escolhem suas vítimas». Se, na sequência que é pressuposta, o verbo entregar ocorresse com um complemento como «aos herdeiros», aí, sim, o pronome pessoal a usar seria lhes.

Convém observar que a consulente não indica com clareza a resposta em que se apoia para defender a opção D. Além disso, note-se que o verbo entregar seleciona um complemento direto e um complemento indireto, não podendo os pronomes pessoais que o realizem permutar sem alteração de significado: «ele prometeu entregar todos os seus pertences ao herdeiros» > «ele prometeu entregá-los aos herdeiros», «ele prometeu entregar-lhes todos os seus pertences», «ele prometeu entregar-lhos». Não se trata, portanto, de um verbo como mandar (verbo causativo), que aceita tanto o pronome o como o pronome lhe, em referência à pessoa a quem se manda fazer algum coisa: «mandou-os fazer o exercício» = «mandou-lhes fazer o exercício» (ver Textos Relacionados).

Quanto à forma «escolhem-as», lamento, mas está incorreta. O correto é mesmo escolhem-nas, com o pronome as passando a nas porque se segue a forma verbal terminada em ditongo nasal (ver Textos Relacionados).