Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «O homem trabalhador é mais feliz», o adjetivo trabalhador pode integrar-se na subclasse dos relacionais?

Esta dúvida surge após termos constatado que não pode ser colocado numa posição pré-nominal mas pode apresentar variação em grau.

Resposta:

Trabalhador não é um adjetivo relacional, porque não «instancia uma relação de agente ou posse relativamente ao nome» (cf. Dicionário Terminológico) que constitui a sua base de derivação. Por outras palavras , em contraste com «invasão americana» (cf. idem), parafraseável por «invasão organizada pelos americanos» ou «invasão dos americanos», «trabalhador» em «homem trabalhador» não é equivalente a «trabalho feito por um homem» ou «homem do trabalho», mas, sim, a «homem que trabalha (muito)».

É de facto agramatical a sequência *«trabalhador homem» (* = agramaticalidade), se com isto se quer significar «homem que é trabalhador». Mas a impossibilidade de empregar trabalhador antes do nome que modifica não é só por si indicativa de adjetivo relacional. Note-se, além disso, que trabalhador admite a variação em grau — «homem muito trabalhador» —, o que não acontece com americano em «invasão americana»: *«invasão muito americana»1.

1 Americano só admitirá flexão em resultado de um processo de intensificação que tem em vista a interpretação «tipicamente americano» ou «repleto de americanos»: «o ambiente era muito americano».

Pergunta:

Relativamente à frase «Vem dar-nos conta do seu saber sobre o tema de que vamos tratar neste seminário», diz-se: «de que vamos tratar», ou «que vamos tratar neste seminário»?

Resposta:

No sentido de «abordar», «discutir», o verbo tratar usa-se com ou sem a preposição de, conforme atesta o Dicionário Houaiss (s. v. tratar): «tratemos hoje o problema da dívida interna do país» (sem preposição); «vou tratar da morfologia, deixando a sintaxe para outra aula» (com a preposição de). Deste modo, estão corretas as duas sequências apresentadas pela consulente.

Atenção com a expressão «trata-se (de)», que é impessoal e se usa sempre preposicionada, com o significado de «o que está em causa é...», «o que importa é...», «(isto) é...», «estamos a falar de...»: «trata-se aqui de reclamar direitos feridos» (idem).

 

CfTratam-se ou trata-se de erros comuns?

 

A repetição de dois sinais de dois pontos na mesma frase é ou tem sido possível, pelo menos, em textos literários, embora se trate de um uso muito marginal que a maioria dos prontuários, das gramáticas de referência ou dos guias gramaticais não chega a mencionar1. Há, no entanto, algumas pistas históricas que permitem um juízo normativo mais consistente.

Pergunta:

O verbo caber, no sentido de competir, flexiona normalmente?

«Cabem aos tribunais as revisões anuais...», ou «Cabe aos tribunais as revisões anuais...»?

Resposta:

O verbo caber não é impessoal, concordando com o seu sujeito (cf. Winfried Busse, Dicionário Sintático de Verbos Portugueses, Coimbra, Almedina, 1994, s. v. caber).

Deste modo, deverá dizer-se e escrever-se «cabem aos tribunais as revisões anuais», porque «revisões anuais» é uma expressão nominal no plural que desempenha a função de sujeito.

Pergunta:

Tomei conhecimento um dia destes de norma de língua culta estabelecendo impossibilidade de ênclise em verbos proparoxítonos. Gostaria de saber se poderia me ajudar com a referência a essa norma. Fiz uma busca rápida, mas não consegui encontrá-la nos materiais que consultei. Saberia me dizer onde posso encontrar referência a ela?

Resposta:

Não encontro referência à restrição que o consulente aponta, que diz respeito a formas verbais, e não a verbos tomados globalmente.

As formas proparoxítonas ocorrem na primeira pessoa do plural: «púnhamos o chapéu» > «púnhamo-lo»; «cantávamos a canção» > «cantávamo-la»; «fizéssemos um elogio» > «fizéssemo-lo» (p. ex.: «fizéssemos um elogio ou não, estava sempre calada» > «fizéssemo-lo ou não, estava sempre calada»). É, pois, possível ocorrerem pronomes átonos em ênclise a formas verbais proparoxítonas.