Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho uma dúvida quanto ao uso do pronome se para coisas inanimadas e impessoais. Por exemplo: «A praça se esvaziou.»/«A praça esvaziou.»

Qual forma é a correta? «A porta abriu», ou «se abriu»?

«O copo caiu e quebrou» ou «se quebrou»?

Resposta:

Não me parece que a gramática normativa tenha uma resposta clara sobre toda esta classe de verbos. É famosa a condenação de "reuniu", em lugar de reuniu-se, mas depois não há a tradição de rejeitar «a praça esvaziou», «o copo partiu/quebrou», «a porta abriu», em lugar de «a praça esvaziou-se», «o copo partiu-se/quebrou-se» e «a porta abriu-se», respetivamente. Trata-se do que em gramáticas como a de M.ª Helena Mira Mateus se chama «verbos de alternância causativa», nos quais o clítico se pode ser obrigatório ou opcional (Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 305/306).1

 

No caso dos verbos esvaziar, partir, quebrar e abrir, recorro à minha intuição (embora não encontre um teste que me permita saber com segurança em que casos o se é opcional e obrigatório), para dizer que, com todos eles, o se é opcional, uma vez que não noto agramaticalidade na ausência deste pronome. No entanto, do ponto de vista da norma, parece-me que se encara este uso como próprio do registo informal, dando-se caráter de formalidade ao uso pronominal («esvaziou-se», «partiu-se», «quebrou-se», «abriu-se»).

1 Opto pela ênclise do pronome átono ao verbo em contexto de frase declarativa sem qualquer relação de subordinação. Sobre a colocação do pronome clítico nas variedades brasileiras, ver Textos Relacionados.

Pergunta:

Já vi, em textos antigos, Cascais escrito como «Cascaes», e Portuguesa como «Portugueza».

Eu tinha ideia de que a escolha do z ou do s, e do e ou do i, nos casos em que têm o mesmo valor fonético, se prendia pela etimologia das palavras. Então porque é que estas palavras não se escrevem desta maneira?

Resposta:

As formas "Cascaes" e "portugueza" são anteriores ao Acordo Ortográfico de 1945. Assim:

1. Cascaes deve ter sido substituído por Cascais na sequência da Reforma de 1911, a qual determinava que a «[a subjuntiva fraca dos ditongos seja sempre escrita com i, u,e nunca e, o [...]» (Relatório, publicado no Diário do Governo, n.º 213, de 12 de setembro de 1911, in Ivo Castro et al., A Demanda da Ortografia Portuguesa, Edições João Sá da Costa, 1987, pág. 156). É possível que a grafia Cascaes tenha perdurado depois de 1911; de qualquer modo, o acordo de 1931 voltava a reforçar que ae devia dar lugar a ai (idem, pág. 165; mantém-se a grafia original): «[Grafar] [c]om ai, au, eu, iu e oi os ditongos que alguns escrevem com ae, ao, eo, io, oe: mãi,

Pergunta:

Tenho a seguinte dúvida:

Em A Cidade e as Serras (edição da Livros do Brasil), lê-se, na página 81: «o homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a "delícia de viver", ele não encontrava agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse.»

A minha dúvida é sobre «o interessasse». Não seria mais correcto «lhe interessasse»?

Ou seriam ambos aceitáveis?

Resposta:

O verbo interessar pode ser transitivo direto («o interessasse») ou transitivo indireto («lhe interessasse»). Com base em Mário Vilela (Dicionário de Português Básico, Porto, Edições ASA, 1991) e Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, pág. 522/523), verifica-se geralmente que este verbo:

a) com complemento direto, ocorre nas aceções de «cativar o espírito» («a
história não interessa as crianças» = «... não as interessa») e «captar o
favor de» («o professor interessou o aluno pelo livro» = «...
interessou-o...»);

b) significando «dizer respeito a», seleciona complemento direto ou complemento indireto («este tema não interessa o público/ao público» = «... não o/lhe interessa»).

Note-se, porém, que há ocorrências de interessar que têm leitura ambígua, entre «cativar o espírito» e «dizer respeito a», podendo elas também aceitar um complemento indireto. Por exemplo, Celso Cunha e Lindely Cintra (ibidem) apresentam o uso de interessar como transitivo direto, na aceção de «captar ou prender o espírito, a atenção, a curiosidade» e «excitar a», mediante o seguinte exemplo: «As histórias de Zefinha não o interessavam.» (José Lins do Rego, Meus Verdes Anos — memórias, Rio de Janeiro, José Olympio, 1957, pág. 318). No entanto, a substituição de o por lhe não afeta a gramaticalidade da frase: «As histórias de Zefinha não lhe interessam.» Neste caso, a interpretação semântica do verbo não indica com clareza a opção sintática.1 Em s...

Pergunta:

Por imposição do terceiro artigo da Base XV do Acordo Ortográfico de 1990, emprega-se o hífen «nas palavras compostas que designam espécies botânicas e zoológicas, estejam ou não ligadas por preposição ou qualquer outro elemento: abóbora-menina, couve-flor, erva-doce, feijão-verde; bênção-de-deus, erva-do-chá, ervilha-de-cheiro, fava-de-santo-inácio, bem-me-quer».

Esta nova regra contradiz aquela que foi a prática dos naturalistas portugueses desde o Iluminismo até ao terceiro quartel do século XX: usar o hífen apenas em nomes vernáculos compostos por justaposição de substantivos ou por locuções verbais. Por exemplo, enquanto um incontornável botânico como AX Pereira Coutinho escrevia sem hífen, no seu Esbôço de uma flora lenhosa portuguesa (1936) nomes como castanheiro da Índia, pinheiro silvestre, e hifenizava somente nomes como alegra-campo, já o presente AO recusa tal variação.

Qual o motivo de tal escolha, tão em contraste com as tradições ortográficas do nosso idioma, e mesmo em contrapelo com as práticas científicas nas línguas castelhana, francesa e italiana?

Resposta:

O consulente apresenta exemplos anteriores ao próprio acordo que vai deixar de estar vigente, o de 1945 (AO 45). Sucede que, neste mesmo acordo, já os compostos, pelo menos, designativos de espécies botânicas, que incluíam uma preposição ou a contração de preposição com artigo, eram apresentados com hífen, ao lado de outros compostos sem esse elemento de ligação (Base XXVIII):

«Emprega-se o hífen nos compostos em que entram, foneticamente distintos (e, portanto, com acentos gráficos, se os têm à parte), dois ou mais substantivos, ligados ou não por preposição ou outro elemento, um substantivo e um adjectivo, um adjectivo e um substantivo, dois adjectivos ou um adjectivo e um substantivo com valor adjectivo, uma forma verbal e um substantivo, duas formas verbais, ou ainda outras combinações de palavras, e em que o conjunto dos elementos, mantida a noção da composição, forma um sentido único ou uma aderência de sentidos. Exemplos: [...] brincos-de-princesa, [...] erva-de-santa-maria, [...] rainha-cláudia, rosa-do-japão, [...] amor-perfeito, [...] bem-me-querbem-te-vi

Trata-se, portanto de uma escolha que, na prática, não tem verdadeiramente origem no Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), mas, sim, no AO 45. Contudo, o uso de hífen em compostos com formas de ligação não é um preceito explicitado nem generalizado pelo acordo em apr...

Pergunta:

Que tempos e modos verbais existem e quais se ensinam atualmente? A maioria das gramáticas não contempla tempos como o futuro do pretérito do indicativo (optando pela designação de modo condicional, tempo presente).

Sinteticamente, o que se deve ensinar aos alunos? No teste intermédio de Língua Portuguesa realizado na semana passada, pedia-se que o aluno conjugasse um verbo no mais-que-perfeito do conjuntivo, mas os alunos conhecem apenas os tempos presente, pretérito imperfeito e futuro deste modo.

Li alguns artigos aqui publicados, mas nenhum me pareceu explícito de forma direta e simples relativamente aos tempos e modos que devemos considerar, ainda que eu retenha a ideia de que naquilo em que a TLEBS for omissa se deve considerar as terminologias anteriormente adotadas. Assim, devo considerar a pág. 472 de Cunha e Cintra e ensinar mais do aqueles três tempos?

Resposta:

Relativamente às formas da flexão verbal correspondentes às categorias de tempo e modo, o Dicionário Terminológico (DT), que é resultado da revisão da TLEBS, define, no subdomínio B.2.2.2. Flexão verbal, os seguinte termos:

Modo:

formas verbais finitas: indicativo, conjuntivo, condicional, imperativo

formas verbais não finitas: infinitivo pessoal, infinitivo impessoal, gerúndio, particípio

Tempo verbal:

presente, pretérito perfeito, pretérito imperfeito, pretérito mais-que-perfeito,  futuro

A noção de tempo composto não surge associada a termo específico, muito embora a sua realidade seja referida no verbete B.2.2.2 Flexão verbal (sublinhado meu): «Os paradigmas de flexão verbal incluem, tradicionalmente, os tempos compostos, embora estes não sejam realizados através de processos flexionais de afixação.»

Não sendo o DT explícito quanto aos termos a aplicar aos dois tempos do condicional, presume-se que estes se designem simples e composto. É o que faz, por exemplo, Ana Martins, na Gramática Aplicada — Língua Portuguesa — 3.º Ciclo do Ensino Básico (Porto Editora, 2011, pág. 69). Noutras gramáticas também recentes, pode aparecer a mesma terminologia, a par de outras designações. É o caso de Da Comunicação à Expressão — Gramática Prática de Português (Lisboa Editora, 2011, págs. 232/233), de M.ª Olga Azevedo