Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Agradeço a gentileza de me esclarecerem acerca de seguinte: ontem, durante a emissão de um programa realizado em Bragança, terra de fragas e fraguedos, a apresentadora Fátima Campos Ferreira, ao caraterizar a morfologia desta zona do país, referiu as «fráguas» deste «reino maravilhoso», em vez de «fragas». Conheço aquele termo desde os meus longínquos 16 anos, quando topei com ele no teatro vicentino. Para meu espanto, o Dicionário Houaiss apresenta frágua também com o valor de fraga. Tendo estas duas palavras origem tão diferenciada, como se pode explicar que se equivalham? Bem sei que a língua tem destas coisas... Mas a apresentadora não o disse apenas uma vez, e pareceu-me muito convicta. Preciosismo?

Bem hajam.

Resposta:

Recomendo, por razões etimológicas, o uso de fraga, para designar penedos ou conjuntos rochosos, mas não me parece que frágua seja claro erro de expressão.

O Dicionário Houaiss apresenta efetivamente a forma frágua como equivalente a fraga, que tem o seguinte comentário etimológico: «segundo Corominas, depreendido do adj[etivo] lat[ino] fragōsus, a, um, "áspero, escarpado, rochoso", registra-se no lat[im] h[i]sp[ânico] o subst[antivo] fragum, "local ou terreno de rochas e penhascos" (cf. cat[alão] e prov[en]ç[al] frau ou afrau "id."), de cujo pl[ural] fraga procede o port[uguês] e gal[e]g[o] fraga, "terreno escarpado e rochoso, penhasco, rocha".» Note-se, porém, que a variante frágua recebe, no dicionário em referência, uma nota etimológica que a remete para um homónimo, frágua, no sentido de «fornalha de ferreiro; forja» e, por extensão de sentido, «ardor, calor; fogo», cuja etimologia remonta a «lat. fabrĭca, ae, "oficina de ferreiro", segundo [Antenor] Nascentes através das f[ormas] *favrega, fravega (arc.), *fragova». É, pois, provável que frágua, como variante de fraga, seja o resultado da extensão semântica do homónimo frágua, «forja», talvez motivada pela semelhança fónica (paronímia) entre frágua e fraga.

Pergunta:

Antes de mais, muito obrigado pelo vosso excelente serviço.

Aqui no Algarve utiliza-se o termo "besaranha" para designar um vento forte e desagradável. Podem ajudar-me a perceber a sua origem e grafia correcta, com s ou com z?

Resposta:

A palavra em questão aparece registada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) e no Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) com a grafia buzaranha, com z. José Pedro Machado (Grande Dicionário da Língua Portuguesa) regista-a com a mesma grafia, com os significados de «grande ventania, vendaval» e, no plural, «coisas fantásticas, que se apresentam aos olhos de quem tem muita febre».

No entanto, a palavra tem sido recolhida em trabalhos sobre falares regionais portugueses, nem sempre mantendo a grafia acima, que é a normativa e a que deve ser usada. Saliento outros registos (mantenho as ortografias originais), que revelam também ter esta palavra variações regionais, fónicas e semânticas, como é o caso de "bezaranha", apresentado pelo consulente:

José Joaquim Nunes, "Dialectos algarvios (Lingoagem do Bárlavento1 [sic])", Revista Lusitana, VII, 1902, pág. 111: «busarãnha ou besarãnha, vento forte e aspero» 

Pombinho Júnior, "Vocabulário alentejano (subsídios para o léxico português)", Revista Lusitana, XXVI, 1925-1927, pág. 83: «buzaranha, s[ubstantivo] c[omum] de dois — Pessoa ou animal muito feio. O mesmo que rabuzana. — O pequeno, coitado, só os pais o podem achar bonito; êle é um buzaranha! (Colhido em Beja. Us[ado] em Beja e Serpa).

Abel Viana, Subsídios para Um Vocabulário Algarvio, separata da Revista de Portugal, 1954, pág. 18: «busaranha: "ventania forte e fria"»

...

Pergunta:

Agradeço esclarecimento quanto ao significado exacto do termo «fixação de texto», que muitas vezes consta da ficha técnica de obras publicadas.

Resposta:

Transcrevo a definição de «fixação de texto» que Maria Isabel Faria e Maria da Graça Pericão registam no seu Dicionário do Livro (Coimbra, Edições Almedina, 2008):

«Trabalho de crítica textual, de natureza estilística e filológica, que consiste na combinação e escolha de variantes de textos diferentes conforme as edições deles existentes, tentando reconstituir um ortotexto1, um restauro do discurso específico do escritor. A fixação de um texto (no sentido de não se verificar a sua alteração) só foi conseguida quando do advento da imprensa, uma vez que até aí os copistas, involuntária ou involuntariamente[,] alteravam  o que copiavam, no primeiro caso devido a distracções ou cansaço,  e no segundo caso por nem sempre concordarem com as opiniões do autor cuja obra transcreviam; a tipografia, criando uma matriz do texto que era sucessivamente impressa, permitiu que ele continuasse íntegro, ressalvando-se apenas algumas (pequenas) alterações quando, no decorrer da impressão, se dava conta de certas incorrecções ou gralhas.»

1 O mesmo que «texto correto».

Pergunta:

"Nombrilismo" existe em português? É sinónimo de egocentrismo? Eis o exemplo, de Clara Ferreira Alves: «O país que gastou milhões [...] em exposições nombrilistas [...]». "Nombrilismus", em textos em alemão, ocorre muitas vezes na Internet.

Obrigado.


Resposta:

É efetivamente sinónimo de egocentrismo, surgido por aportuguesamento do francês nombrilisme (cf. Trésor de la Langue Française, versão em linha), que deriva de nombril, «umbigo», a que se associa o sufixo -isme, correspondente ao português -ismo. É provável que a autora em questão o tenha adaptado por iniciativa própria, porque não o encontro dicionarizado. Este galicismo só se justifica por um efeito estilístico, sugestivo do empréstimo frequente de nomes franceses (por exemplo, fauvismo, de fauvisme, por sua vez, de fauve, «fera», «pintor independente») para identificar vários movimentos nascidos no meio cultural e artístico, a que se alude na frase apresentada pelo consulente por meio da palavra «exposições».

Dito isto, eu diria que a palavra parece criação efémera, cujo significado é veiculado com vantagem por palavras há mais tempo disponíveis no léxico português como egocentrismo ou por criações que considerem a forma vernácula umbigo (cognato do francês nombril), da qual se poderia derivar "umbiguismo", ou o seu étimo latino umbilīcus, cujo radical permanece no adjetivo umbilical e poderá servir de base para a derivação da forma "umbilicalismo". De qualquer modo, compreendo que Clara Ferreira Alves não tenha querido arriscar o uso de um termo sem tradição e tenha preferido adaptar o francês nombrilisme, que tem certa carga de referências culturais.

 

 

Pergunta:

Como é que se pronuncia a palavra paulense, quando se refere a uma localidade chamada Paul? Com um ditongo ([paw.'lẽ.sɨ]) ou com um hiato ([pɐ.u.'lẽ.sɨ])? Já agora, por acaso existe a palavra "paulense", quando se refere a algo chamado Paulo? E como é que se pronuncia?

Muito obrigado!

Resposta:

Como gentílico correspondente a Paul (por exemplo, na ilha de Santo Antão, em Cabo Verde ou no concelho da Covilhã, em Portugal), a palavra tem hiato ("a-u" leem-se separadamente): "pa-u-lense" (transcrição fonética: [pɐulẽsɨ]). Como gentílico de localidades cujos topónimos tenham origem no antropónimo Paulo ou Paula (por exemplo, Monsenhor Paulo e Paula Cândido, em Minas Geras; cf. s.v. paulense, Dicionário Houaiss), a palavra também tem a grafia paulense, mas pronunciada com ditongo "au": "pau-lense" (transcrição fonética: [pawlẽsɨ]).