Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao ler o documento do acordo ortográfico, não encontrei nada sobre a obrigatoriedade de se colocar letra maiúscula no início das frases. Foi esquecimento, ou é mesmo facultativo?

Resposta:

Depois de ponto, é mesmo forçoso empregar maiúscula inicial para iniciar uma frase. Não acho que seja esquecimento, nem, claro, que o silêncio sobre o assunto signifique facultatividade, no contexto da aplicação do novo Acordo Ortográfico (AO). Penso que, pura e simplesmente, o novo AO segue a norma que o precedeu, o Acordo de 1945, que não enuncia o preceito da obrigatoriedade da maiúscula inicial no começo de nova frase. Contudo, não era assim que acontecia no Brasil, pelo menos, até finais de 2008, porque o Formulário Ortográfico de 1943 era bem explícito sobre o assunto, como se pode ler na instrução XVI:

«Emprega-se letra inicial maiúscula: 1.º – No começo do período, verso ou citação direta: Disse o Padre Antônio Vieira: "Estar com Cristo em qualquer lugar, ainda que seja no Inferno, é estar no Paraíso." "Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que à luz do sol encerra As promessas divinas da Esperança..." (Castro Alves.) [...].»

No entanto, em Portugal, o Tratado de Ortografia Portuguesa de Rebelo Gonçalves (Lisboa, Editora Atlântida, 1947) refere como uso fundamental o da maiúscula «no começo de períodos ou de citações directas e bem assim no início de versos, caso este em que também é lícito, se não o impede a pontuação outro motivo, usar a minúscula [...]» (p. 291).

Pergunta:

Qual o significado da palavra Morungava (nome de um distrito do município de Gravataí)?

Resposta:

Sobre a origem deste topónimo do Rio do Grande do Sul não temos informação segura. O mais que encontramos é uma etimologia popular, sem valor científico (ver esta página):

«Contam os antigos que o nome "Morungava" tem origem num índio chamado "ungaba" ou "ungava" que habitava no morro local. Quem se referia ao índio e [à] sua morada dizia "o morro do ungava" e, daí, Morungava. [...]»

Convém assinalar que existe um topónimo brasileiro muito parecido, Morungaba, nome de um município no estado de S. Paulo, sobre o qual um artigo da Wikipédia diz ter origem numa expressão em tupi-guarani, com o significado de «colmeia de morungas, abelhas produtoras de dulcíssimo mel». Não pude confirmar esta etimologia, que me parece duvidosa, porque não encontro registo dicionarístico da forma "morunga".

Mesmo assim, penso que Morungava tem boas hipóteses de ter a mesma etimologia que Morungaba, porque a permuta entre as consoantes [v] e [b] não é fenómeno raro em português, que terá interferido na transmissão destes topónimos. Importa, por isso, referir Silveira Bueno1, que, no Vocabulário Tupi-Guarani-Português (São Paulo, Éfeta, 1998) regista como substantivo comum masculino a forma morungava, assim definida: «O marco, a balisa [sic], o sinal de limites entre duas herdades. De môrangaba, fazer, colocar sinal. Ribeirão.» (Nesta definição, «ribeirão» não é uma aceção, mas, sim, a indicação de que o substantivo é também nome de um ribeirão.) Na mesma obra, na secção dedicada à toponímia, Silveira Bueno regista Morungava, que tem a forma paralela Morungaba, como subst...

Pergunta:

Pretendo saber se existe a palavra criminogénos, pois li em um texto de natureza jurídica inserida na frase «novas mutabilidades imprimidas pelos fenómenos criminógenos».

Resposta:

A palavra criminógeno figura no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (São Paulo, Editora UNESP, 2004), com o significado de «que incita à criminalidade; que causa crime» (exemplo: «o jogo do bicho é considerado um fator criminógeno»). No mesmo dicionário, é-lhe atribuída uma variante, crimógeno, usada na mesma aceção. Este vocábulo está também registado no iDicionário Aulete e ocorre no Dicionário Houaiss [neste dicionário, aparece incluído no verbete da entrada crimin(o)-].

Pergunta:

O verbo diligenciar é seguido de preposição, ou é transitivo direto?

Podemos dizer «diligenciar pelo gozo de férias»?

Resposta:

A frase apresentada está correta.

O verbo diligenciar usa-se frequentemente com um complemento oblíquo introduzido pela preposição por, como o verbo esforçar-se — «diligenciava por não se atrasar» —, podendo também ocorrer com a preposição em (Dicionário Houaiss de Verbos da Língua Portuguesa — conjugação e uso de preposições, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2003).

Este verbo associa-se ainda a orações finais finitas e não finitas de infinitivo («Diligenciou para que o caso fosse resolvido [...]»; «[...] começou a diligenciar no sentido de minorar as péssimas condições em que aquelas pessoas se encontravam» — Winfried Busse, Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses, Coimbra, Livraria Almdeina, 1994) e sem preposição, seguido de infinitivo («saltando da cama, diligenciou aproximar-se da figurita imóvel do petiz» — idem). 

Pergunta:

A palavra ria designa um tipo de acidente geográfico comum no litoral do norte de Portugal, na Galiza e em outras partes do norte da Península Ibérica. Os dicionários da língua portuguesa a definem de modo díspar, o que me deixa na dúvida sobre qual seria a sua definição correta, exata, razão pela qual peço que o Ciberdúvidas, usando da sua tradicional competência incomum, apresente a significação científica, exata e completa do vocábulo em apreço.

Indago ainda se no plural o termo supramencionado adquiriria outro sentido, como sugere o Dicionário Aurélio.

Muito obrigado.

Resposta:

A palavra ria pode referir-se a um «esteiro ou braço de rio», conforme definição do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, que também a classifica como termo usado no domínio da geografia para designar «[uma] secção da costa, geralmente abrupta e ramificada, onde se deram movimentos radiais que provocaram o parcial preenchimento de vales pelas águas marítimas».

Atendendo a esta descrição, só se aplica ria, num contexto especializado, a um acidente geográfico muito frequente sobretudo na Galiza, e com paralelo noutras zonas da Europa (Bretanha, Sudoeste de Inglaterra) e do globo, mas que, a rigor, não se encontra em Portugal, muito embora neste país certos sistemas litorâneos sejam tradicionalmente chamados rias (ria de Aveiro, no litoral centro-norte, e ria Formosa, no Sul).

Também convém não confundir uma ria com um fiorde: este, como indica o seu nome norueguês, fjord (aportuguesado como fiorde), é «estreito braço de mar, entre altas escarpas adentro da costa» (cf. nota etimológica do Dicionário Houaiss), que resulta da inundação de um vale glaciário pelas águas do mar; uma ria também surge em consequência da inundação de um vale, com a particularidade de este não ter origem glaciária (cf. a mesma distinção no artigo da Wikipédia em espanhol; note-se que se referem aí as rias portuguesas, que não são, como se disse, verdadeiras rias).

 

N. E. (25/06/2020) – Embora se aceite a grafias «ria Formosa», recomenda-se que neste hidrotopónimo a palavra ria também tenha maiúscula inicial, porque é inseparável do segundo elemento: Ria Formosa.