Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em língua portuguesa há algum equivalente às questions tags em inglês? Em inglês recorre-se ao esquema afirmativa/negativa ou negativa/afirmativa (Ex.: «Gostas de morangos, não gostas?»/«Não gostas de morangos, (ou) gostas?»). Na região em que leciono, muitos insistem ser correto dizer «Gostas de morangos, pois gostas?», colocando ambas as partes da frase na afirmativa... É correto? Se não é correto e se se usa a mesma estrutura que em inglês, então como posso explicar aos alunos e em que suporte posso fundamentar a minha explicação?

Agradeço desde já a atenção.

Resposta:

O uso descrito pela consulente («gostas de morangos, pois gostas?») não faz parte da norma-padrão do português europeu e só é válido no discurso da comunidade regional ou do grupo social que o apresentam como variante. Contudo, não vejo que a existência dessa variante impeça o estudo das question tags do inglês, primeiro, porque os alunos estão atualmente em contacto permanente com a norma-padrão europeia através da escola e dos meios de comunicação social, e, depois, porque a aquisição das question tags inglesas terá de se confrontar com as especificidades das construções equivalentes em português normativo, que não reproduzem os esquemas afirmativa/negativa e negativa/afirmativa do inglês.

Desenvolvendo um pouco, é necessário assinalar que as question tag não são exclusivas do inglês e que constituem «uma forma de retoma e de pedido de confirmação do conteúdo do enunciado anterior», segundo a Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa (Editorial Caminho, 2003, pág. 479), de M. H. Mira Mateus et al. As construções existentes em português europeu1, também conhecidas como "interrogativas tag", apresentam as seguintes configurações (idem, pág. 478):

a) não + verbo (da frase declarativa que é retomada)?

ex.: «A Joana saiu, não saiu?»;

b) ... não é verdade?

ex.: «A Joana saiu, não é verdade?»; «A Joana não saiu, não verdade?»;

c) ... não é assim?

ex.: «A Joana saiu, não é assim?»; «A Joana não saiu, não é assim?»;

d) ... não é?

ex.: «A Joana saiu, não é?»; «A Joana não saiu, não é?»;

Pergunta:

Qual é correcto? Dizer «Quem concorda com que Deus seja bom?», ou «Quem concorda que Deus seja bom?»?

Grato.

Resposta:

Deve dizer e escrever «Quem concorda com que Deus seja bom?» ou «Quem concorda que Deus seja bom?»

Transcrevo o que a linguista brasileira Maria Helena de Moura Neves diz sobre este verbo no Guia de Usos do Português (São Paulo, Editora UNESP, 2003):

«1. Com o significado de "entrar em acordo" usa-se com complemento (referente a pessoa) iniciado pela preposição com. O único filho de Rainier, o Príncipe Albert, também não teve dificuldades em CONCORDAR com sua nova companheira.

2. Com o significado de "entrar em acordo a respeito de" usa-se com complemento iniciado pelas preposições:

com. Não sei onde estava com a cabeça quando CONCORDEI com essa reunião de amanhã com Cândido Alegria. [...]

— em (complemento oracional ou não). [...] No céu todas as tonalidades de cor foram desfilando enquanto o sol se movia e, pela primeira e única vez em toda a existência, os dois CONCORDARAM em um tom de azul como o mais belo de todos. [...] Os trabalhadores CONCORDARAM em trabalhar 24 horas por dia, incluindo finais de semana e feriados. [...] Os amigos hão de CONCORDAR em que os tempos estão mudando.

Quando o complemento não é de infinitivo (isto é, inicia-se por que), ele mais geralmente se constrói sem preposição (objeto direto). [...] O delegado olhou-o e CONCORDOU que sua cara era, em verdade, um perigo público. [...].»

Pergunta:

Libertar é um verbo com dois particípios passados: um regular – libertado – e outro irregular – liberto.

O particípio regular é utilizado nos tempos compostos com os verbos auxiliares ter e haver: «A polícia tinha (havia) libertado o ladrão.»

O particípio irregular é usado com os verbos auxiliares ser ou estar, por exemplo: «O ladrão foi liberto pela polícia.»

Vejam agora como o jornal semanal de informação Folha 8 redigiu a sua manchete (do dia 25/08/2012, pág.9) e digam se desta vez acertou:

«Após cerca de meia hora de cárcere "foi libertado", por intervenção do secretariado principal da UNITA.»

Que acham, senhores consultores?

Vai bem o jornalismo angolano? Respondam-me, por favor!

Resposta:

A regra enunciada pelo consulente tem exceções, como é o caso do verbo em apreço. Com efeito, o particípio libertado pode associar-se ao auxiliar ser, na voz passiva, sem que isso seja condenável. Leia-se o que o Dicionário Houaiss anota a respeito da conjugação de libertar: «Há forte tendência ao uso do particípio regular libertado também em estruturas de voz passiva.» Refira-se ainda que o Dicionário Houaiss de Verbos da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2003, pág. 17) reforça esta observação quando integra o verbo libertar num certo tipo de verbos (sublinhado meu):

«[...] [E]mbora seja ainda preferida a construção da passiva com o particípio irregular (O fogo havido sido aceso.), há tendência ao uso da forma regular para todas as locuções verbais, sejam passivas (O fogo havia sido acendido.), sejam ativas (Haviam acendido o fogo.):

acender ∙ assentar ∙ benzer ∙ dispersar ∙ envolver ∙ enxugar ∙ expressar ∙ findar ∙ inserir ∙ isentar ∙ juntar ∙ libertar ∙ pegar ∙ restringir ∙ secar ∙ segurar ∙ sujar ∙ sujeitar»

Mas se recair a suspeita de parcialidade sobre estas duas fontes, porque são produtos da mesma entidade, o Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia, acrescente-se que o Manual de Língua Portuguesa (Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pág. 312), de Paul Teyssier, indica que liberto é empregado na voz passiva, com ser, mas não na ativa, com ter, enquanto libertado é aceite nas duas situações.

Quanto à questão sobre o estado do jornalismo angolano, lamento, mas não me parece que uma resposta sobre dúvidas da língua portuguesa deva ter o alcance crítico desejado...

Pergunta:

Gostava de saber qual é a pronúncia correcta de alergia.

Obrigada.

Resposta:

Em português europeu, a pronúncia de alergia* generalizada ou tida por padrão é com e mudo na sílaba -ler- (o e de de), conforme indica a transcrição fonética [ɐlɨɾˈƷiɐ], do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ver também o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora). No entanto, há falantes que produzem um e aberto na referida sílaba, sem que se possa dizer que se trata de uma verdadeira incorreção — é uma variante aceitável: [ɐlɛɾˈƷiɐ]. Para o português do Brasil, a pronúncia do registo áudio disponível no iDicionário Aulete, parece ter um e fechado ([aleRˈƷiɐ]).

* termo da área da Medicina, alergia é a sensibilidade anormal do organismo perante certas  substâncias, como o pólen das flores. No sentido figurado: «aversão», «antipatia». Chegou-nos do francês allergie, do grego grego állos, «diferente» + érgon, «efeito». [in 

Pergunta:

Numa passagem do livro A Mão e a Luva, de Machado de Assis, lê-se «Naquela tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobiçar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos ramos, (...)». Como se justifica o uso do pronome lhe no singular, quando ele se refere a mangueiras?

Resposta:

Não excluindo a hipótese de se tratar de erro (Machado de Assis deveria ter escrito lhes, se queria referir-se às «mangueiras», no plural), há outras duas possibilidades, pressupondo a ambiguidade de lhe nessa frase:

1. O lhe refere-se a «mangueiras», apesar de se encontrar no singular, reproduzindo assim um funcionamento arcaico do pronome pessoal, que Camões patenteia na sua linguagem do séc. XVI. Nesse caso, trata-se de um dativo possessivo («seus ramos»).

2. O pronome lhe refere-se à personagem Guiomar, que assim é construída como beneficiária do facto de as mangueiras estarem carregadas. Nesse caso, a construção configura um dativo de interesse, e a frase deve ser entendida como «as frutas doces que pendiam dos ramos para ela».