Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostava de saber qual é a pronúncia correcta de alergia.

Obrigada.

Resposta:

Em português europeu, a pronúncia de alergia* generalizada ou tida por padrão é com e mudo na sílaba -ler- (o e de de), conforme indica a transcrição fonética [ɐlɨɾˈƷiɐ], do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ver também o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora). No entanto, há falantes que produzem um e aberto na referida sílaba, sem que se possa dizer que se trata de uma verdadeira incorreção — é uma variante aceitável: [ɐlɛɾˈƷiɐ]. Para o português do Brasil, a pronúncia do registo áudio disponível no iDicionário Aulete, parece ter um e fechado ([aleRˈƷiɐ]).

* termo da área da Medicina, alergia é a sensibilidade anormal do organismo perante certas  substâncias, como o pólen das flores. No sentido figurado: «aversão», «antipatia». Chegou-nos do francês allergie, do grego grego állos, «diferente» + érgon, «efeito». [in 

Pergunta:

Numa passagem do livro A Mão e a Luva, de Machado de Assis, lê-se «Naquela tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobiçar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos ramos, (...)». Como se justifica o uso do pronome lhe no singular, quando ele se refere a mangueiras?

Resposta:

Não excluindo a hipótese de se tratar de erro (Machado de Assis deveria ter escrito lhes, se queria referir-se às «mangueiras», no plural), há outras duas possibilidades, pressupondo a ambiguidade de lhe nessa frase:

1. O lhe refere-se a «mangueiras», apesar de se encontrar no singular, reproduzindo assim um funcionamento arcaico do pronome pessoal, que Camões patenteia na sua linguagem do séc. XVI. Nesse caso, trata-se de um dativo possessivo («seus ramos»).

2. O pronome lhe refere-se à personagem Guiomar, que assim é construída como beneficiária do facto de as mangueiras estarem carregadas. Nesse caso, a construção configura um dativo de interesse, e a frase deve ser entendida como «as frutas doces que pendiam dos ramos para ela».

Pergunta:

A interjeição uai, que exprime espanto, surpresa, impaciência, susto, terror, é muito usada em Minas Gerais, Brasil, pelos mineiros, seus naturais ou habitantes, constituindo-se num verdadeiro símbolo deles e de seu Estado, embora também se faça ouvir em outros Estados brasileiros como, por exemplo, em Mato Grosso do Sul, onde nasci e moro. Eu mesmo sempre a utilizei, pouco me importando se ela é considerada por muitos também como símbolo caipira ou como linguajar caipira.

Li alhures que em Portugal a palavra em apreço é usual em Setúbal. É verdade? Se a resposta for afirmativa, poderiam dizer-me se a mesma tem uso apenas na cidade de Setúbal ou também em todo o distrito de Setúbal? E em outras partes de Portugal ela seria utilizada?

O dicionário em linha da Porto Editora consigna uai, acusando a sua utilização na Guiné-Bissau, entretanto, nada dizendo se nos demais países africanos de expressão portuguesa ela ocorre, pelo que peço os esclarecimentos do Ciberdúvidas quanto a este ponto específico. Registre-se ainda que o referido elucidário eletrônico parece ignorar o uso da mesma no Brasil, já que a ele não faz menção.

Peço ainda informações sobre a etimologia da interjeição em apreço e bem assim se teria vindo de Portugal para o Brasil durante a colonização.

Por favor, os esclarecimentos do nosso Ciberdúvidas, sempre eruditos, corretos e estéticos, portanto de alta qualidade.

Muito obrigado.

Resposta:

A interjeição uai parece ter uso extensivo em diferentes regiões do espaço linguístico do português — não é, portanto, como o consulente bem frisa, exclusivo de Minas Gerais e dos outros estados brasileiros. Mas definir com precisão as zonas dialetais onde essa interjeição é corrente não é tarefa fácil, porque os dicionários gerais podem não concordar entre si.

Dito isto, passo a comentar as hipóteses e questões levantadas pelo consulente:

1. Entre os dicionários gerais que consultei1, nenhum atribui a interjeição uai! ao falar da cidade de Setúbal. Tal não significa que a interjeição não se use ou não se tenha usado nessa cidade ou na sua região; o mais que se pode apurar, já não nos dicionários consultados, mas em dicionários de regionalismos, é que uai! também ocorre ou ocorria2 em falares algarvios, conforme se regista no Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves (Algarve em Foco Editora, 1996). Sabendo que a cidade de Setúbal acolheu muitos algarvios, é natural que a interjeição se ouvisse ou se ouça ainda nessa cidade portuguesa.

2. Só o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (com a versão em linha do Dicionário da Língua Portuguesa da mesma editora) indica que uai! é interjeição usada na Guiné-Bissau. O Aurélio XXI diz que, além de brasileirismo, se trata de provincianismo português, sem especificar. Os restantes dicionários que consultei classificam a palavra como brasileirismo, mas também acrescentam que é regionalismo açoriano, chegando a 3.ª edição do dicionário de Cândido de Figueiredo a caracterizá-lo como termo das Flores, equivalente a ah! e oh!. O...

Pergunta:

Tenho visto com frequência os vocábulos ingleses amenities (no sentido de comodidades oferecidas por determinado alojamento) e complimentary (na aceção de gratuito) traduzidos em português respetivamente como amenidades e «de cortesia». Tenho grandes reservas em relação a estas traduções, especialmente a primeira, que me parece um decalque, e não as encontrei dicionarizadas como tal nas publicações que consultei.

Grato, desde já, pelo vosso esclarecimento.

Resposta:

A palavra inglesa amenities, no plural (singular amenity) pode ser traduzida, em referência a instalações, por «comodidades e equipamentos» (versão em linha do Dicionário Inglês-Português da Porto Editora; ver também Dicionário Verbo Oxford Inglês-Português 2003 e The Oxford Portuguese Dictionary, que acrescentam atrativos, vantagens, confortos). A expressão «hotel amenities» é traduzida por «equipamentos de hotel» (Dicionário Inglês-Português da Porto Editora).

Quanto a complimentary, aceita-se a tradução pela expressão «de cortesia», além de grátis e «de graça» (cf. idem; no Dicionário Oxford Verbo Inglês-Português, como sinónimo de free).

Pergunta:

A minha dúvida prende-se com a maneira correcta de pronunciar o nome Diego.

Este nome encontra-se na lista autorizada de nomes do Instituto dos Registos e Notariado de Portugal, mas por ser pouco comum ninguém me sabe dizer se se pronuncia "Diêgo" ou "Diégo".

Será que me podem ajudar?

Obrigada.

Resposta:

Não conheço fontes que indiquem qual a pronúncia mais frequente ou mais aceite do nome próprio Diego. Como falante de português europeu, costumo pronunciá-lo com e aberto, e outros falantes também, como se pode ouvir numa reportagem televisiva com a locução nessa variedade. Além disso, é possível que esse e aberto na forma do nome em português europeu seja motivado pelos aspetos fonéticos do e no ditongo crescente ie em castelhano, atendendo ao que descreve T. Navarro Tomás, no Manual de Pronunciación Española (Madrid, Instituto Miguel de Cervantes, 1982, pág. 65; ę e ǫ representam e e o abertos; o acento tónico, sobre a vogal no original, passou para o começo da sílaba tónica):1

«De las vocales e, o queda dicho que ante la semivocal i resultan relativamente abiertas [...] Los diptongos crecientes, formados por semiconsoante y vocal, son: ia-ja, ie-ję, io-jǫ, iu-ju, ua-wa, ui-wi, uo-wǫ. Ejemplos. [...] viejobięxo [...].»

Mas não é impossível que muitos falantes o usem com e fechado tendo em conta que nomes próprios e substantivos comuns com -o final e -e- na penúltima sílaba (que é tónica), têm esta vogal pronunciada como "ê" (símbolo fonét...