Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual é correcto? Dizer «Quem concorda com que Deus seja bom?», ou «Quem concorda que Deus seja bom?»?

Grato.

Resposta:

Deve dizer e escrever «Quem concorda com que Deus seja bom?» ou «Quem concorda que Deus seja bom?»

Transcrevo o que a linguista brasileira Maria Helena de Moura Neves diz sobre este verbo no Guia de Usos do Português (São Paulo, Editora UNESP, 2003):

«1. Com o significado de "entrar em acordo" usa-se com complemento (referente a pessoa) iniciado pela preposição com. O único filho de Rainier, o Príncipe Albert, também não teve dificuldades em CONCORDAR com sua nova companheira.

2. Com o significado de "entrar em acordo a respeito de" usa-se com complemento iniciado pelas preposições:

com. Não sei onde estava com a cabeça quando CONCORDEI com essa reunião de amanhã com Cândido Alegria. [...]

— em (complemento oracional ou não). [...] No céu todas as tonalidades de cor foram desfilando enquanto o sol se movia e, pela primeira e única vez em toda a existência, os dois CONCORDARAM em um tom de azul como o mais belo de todos. [...] Os trabalhadores CONCORDARAM em trabalhar 24 horas por dia, incluindo finais de semana e feriados. [...] Os amigos hão de CONCORDAR em que os tempos estão mudando.

Quando o complemento não é de infinitivo (isto é, inicia-se por que), ele mais geralmente se constrói sem preposição (objeto direto). [...] O delegado olhou-o e CONCORDOU que sua cara era, em verdade, um perigo público. [...].»

Pergunta:

Libertar é um verbo com dois particípios passados: um regular – libertado – e outro irregular – liberto.

O particípio regular é utilizado nos tempos compostos com os verbos auxiliares ter e haver: «A polícia tinha (havia) libertado o ladrão.»

O particípio irregular é usado com os verbos auxiliares ser ou estar, por exemplo: «O ladrão foi liberto pela polícia.»

Vejam agora como o jornal semanal de informação Folha 8 redigiu a sua manchete (do dia 25/08/2012, pág.9) e digam se desta vez acertou:

«Após cerca de meia hora de cárcere "foi libertado", por intervenção do secretariado principal da UNITA.»

Que acham, senhores consultores?

Vai bem o jornalismo angolano? Respondam-me, por favor!

Resposta:

A regra enunciada pelo consulente tem exceções, como é o caso do verbo em apreço. Com efeito, o particípio libertado pode associar-se ao auxiliar ser, na voz passiva, sem que isso seja condenável. Leia-se o que o Dicionário Houaiss anota a respeito da conjugação de libertar: «Há forte tendência ao uso do particípio regular libertado também em estruturas de voz passiva.» Refira-se ainda que o Dicionário Houaiss de Verbos da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2003, pág. 17) reforça esta observação quando integra o verbo libertar num certo tipo de verbos (sublinhado meu):

«[...] [E]mbora seja ainda preferida a construção da passiva com o particípio irregular (O fogo havido sido aceso.), há tendência ao uso da forma regular para todas as locuções verbais, sejam passivas (O fogo havia sido acendido.), sejam ativas (Haviam acendido o fogo.):

acender ∙ assentar ∙ benzer ∙ dispersar ∙ envolver ∙ enxugar ∙ expressar ∙ findar ∙ inserir ∙ isentar ∙ juntar ∙ libertar ∙ pegar ∙ restringir ∙ secar ∙ segurar ∙ sujar ∙ sujeitar»

Mas se recair a suspeita de parcialidade sobre estas duas fontes, porque são produtos da mesma entidade, o Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia, acrescente-se que o Manual de Língua Portuguesa (Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pág. 312), de Paul Teyssier, indica que liberto é empregado na voz passiva, com ser, mas não na ativa, com ter, enquanto libertado é aceite nas duas situações.

Quanto à questão sobre o estado do jornalismo angolano, lamento, mas não me parece que uma resposta sobre dúvidas da língua portuguesa deva ter o alcance crítico desejado...

Pergunta:

Gostava de saber qual é a pronúncia correcta de alergia.

Obrigada.

Resposta:

Em português europeu, a pronúncia de alergia* generalizada ou tida por padrão é com e mudo na sílaba -ler- (o e de de), conforme indica a transcrição fonética [ɐlɨɾˈƷiɐ], do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ver também o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora). No entanto, há falantes que produzem um e aberto na referida sílaba, sem que se possa dizer que se trata de uma verdadeira incorreção — é uma variante aceitável: [ɐlɛɾˈƷiɐ]. Para o português do Brasil, a pronúncia do registo áudio disponível no iDicionário Aulete, parece ter um e fechado ([aleRˈƷiɐ]).

* termo da área da Medicina, alergia é a sensibilidade anormal do organismo perante certas  substâncias, como o pólen das flores. No sentido figurado: «aversão», «antipatia». Chegou-nos do francês allergie, do grego grego állos, «diferente» + érgon, «efeito». [in 

Pergunta:

Numa passagem do livro A Mão e a Luva, de Machado de Assis, lê-se «Naquela tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobiçar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos ramos, (...)». Como se justifica o uso do pronome lhe no singular, quando ele se refere a mangueiras?

Resposta:

Não excluindo a hipótese de se tratar de erro (Machado de Assis deveria ter escrito lhes, se queria referir-se às «mangueiras», no plural), há outras duas possibilidades, pressupondo a ambiguidade de lhe nessa frase:

1. O lhe refere-se a «mangueiras», apesar de se encontrar no singular, reproduzindo assim um funcionamento arcaico do pronome pessoal, que Camões patenteia na sua linguagem do séc. XVI. Nesse caso, trata-se de um dativo possessivo («seus ramos»).

2. O pronome lhe refere-se à personagem Guiomar, que assim é construída como beneficiária do facto de as mangueiras estarem carregadas. Nesse caso, a construção configura um dativo de interesse, e a frase deve ser entendida como «as frutas doces que pendiam dos ramos para ela».

Pergunta:

A interjeição uai, que exprime espanto, surpresa, impaciência, susto, terror, é muito usada em Minas Gerais, Brasil, pelos mineiros, seus naturais ou habitantes, constituindo-se num verdadeiro símbolo deles e de seu Estado, embora também se faça ouvir em outros Estados brasileiros como, por exemplo, em Mato Grosso do Sul, onde nasci e moro. Eu mesmo sempre a utilizei, pouco me importando se ela é considerada por muitos também como símbolo caipira ou como linguajar caipira.

Li alhures que em Portugal a palavra em apreço é usual em Setúbal. É verdade? Se a resposta for afirmativa, poderiam dizer-me se a mesma tem uso apenas na cidade de Setúbal ou também em todo o distrito de Setúbal? E em outras partes de Portugal ela seria utilizada?

O dicionário em linha da Porto Editora consigna uai, acusando a sua utilização na Guiné-Bissau, entretanto, nada dizendo se nos demais países africanos de expressão portuguesa ela ocorre, pelo que peço os esclarecimentos do Ciberdúvidas quanto a este ponto específico. Registre-se ainda que o referido elucidário eletrônico parece ignorar o uso da mesma no Brasil, já que a ele não faz menção.

Peço ainda informações sobre a etimologia da interjeição em apreço e bem assim se teria vindo de Portugal para o Brasil durante a colonização.

Por favor, os esclarecimentos do nosso Ciberdúvidas, sempre eruditos, corretos e estéticos, portanto de alta qualidade.

Muito obrigado.

Resposta:

A interjeição uai parece ter uso extensivo em diferentes regiões do espaço linguístico do português — não é, portanto, como o consulente bem frisa, exclusivo de Minas Gerais e dos outros estados brasileiros. Mas definir com precisão as zonas dialetais onde essa interjeição é corrente não é tarefa fácil, porque os dicionários gerais podem não concordar entre si.

Dito isto, passo a comentar as hipóteses e questões levantadas pelo consulente:

1. Entre os dicionários gerais que consultei1, nenhum atribui a interjeição uai! ao falar da cidade de Setúbal. Tal não significa que a interjeição não se use ou não se tenha usado nessa cidade ou na sua região; o mais que se pode apurar, já não nos dicionários consultados, mas em dicionários de regionalismos, é que uai! também ocorre ou ocorria2 em falares algarvios, conforme se regista no Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves (Algarve em Foco Editora, 1996). Sabendo que a cidade de Setúbal acolheu muitos algarvios, é natural que a interjeição se ouvisse ou se ouça ainda nessa cidade portuguesa.

2. Só o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (com a versão em linha do Dicionário da Língua Portuguesa da mesma editora) indica que uai! é interjeição usada na Guiné-Bissau. O Aurélio XXI diz que, além de brasileirismo, se trata de provincianismo português, sem especificar. Os restantes dicionários que consultei classificam a palavra como brasileirismo, mas também acrescentam que é regionalismo açoriano, chegando a 3.ª edição do dicionário de Cândido de Figueiredo a caracterizá-lo como termo das Flores, equivalente a ah! e oh!. O...