Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a tradução para a palavra gamification? Será gamificação?  E, se sim, porque é que ainda não aparece nos dicionários? Como posso saber se é legítimo usar numa dissertação de mestrado?

Muito obrigado!

Resposta:

No contexto de áreas especializadas, não se pode esperar que os dicionários gerais sejam esclarecedores, até porque estes tendem a acolher sobretudo o vocabulário mais estável. Quanto à boa formação de "gamificação", há a dizer que a palavra é possível, muito embora o radical que é escrito gam- se leia supostamente como "gueim", isto é, como se pronuncia em inglês, o que levanta alguns problemas de aceitabilidade, porque esta grafia foge aos princípios que definem a relação entre a ortografia e a fonética do português. Em alternativa, dado usar-se em espanhol ludificación, jueguización e juguetización (ver Wikipédia em espanhol) e, em francês, ludification (Wikipédia em francês), porque não formar "ludificação" ou "joguização"? Estas formas neológicas têm a vantagem de ter radicais de origem latina e, por isso, enquadram-se melhor na tradição de formação de palavras do português.

Pergunta:

Considera-se que pertencem a uma família de palavras as palavras com o mesmo radical. Será que campeão é da família de campo, ou atravessar é da família de travesseiro?

Resposta:

Tendo em consideração que a família de palavras é definida pelas palavras que têm em comum um mesmo radical, pode dizer-se que, por razões históricas, campeão é da família de campo, e travesseiro, da família de atravessar. Mas vale a pena deixar breves comentários:

1. A palavra campeão está muito indiretamente ligada a campo, porque, embora tenha um radical de origem latina (camp-), terá aparecido em português como um empréstimo, conforme explica o Dicionário Houaiss: «[do] germ[ânico] ocid[ental] *kampjo, der[ivado] de kamp, "campo de batalha", este do lat[im] campus; talvez pelo fr[ancês] champion [...].»

2. Quanto a travesseiro, «almofada [...] que se coloca à cabeceira da cama e serve para descansar a cabeça, ao dormir», trata-se de um derivado não de atravessar, mas de travesso, também segundo a mesma fonte: «travesso + -eiro; o nome advém do fato de ser uma espécie de almofada que se põe na cama atravessada em relação ao comprimento da mesma.»

Pergunta:

Costumo ouvir «o síndrome». Creio que a palavra é feminina: «a síndrome».

Existe também, no masculino, a variante «o sindroma», palavra grave?

Obrigada.

Resposta:

Recomenda-se síndrome ou síndroma, sempre esdrúxulas, do género feminino (cf. Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora). Também se regista síndromo (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa), variante pouco usada, também esdrúxula, mas do género masculino.

1 Daí que se diga «a sida», atendendo a que esta palavra é originalmente o acrónimo de «síndrome de imunodeficiência adquirida».

Pergunta:

O termo learnability é utilizado em vários domínios. No contexto da usabilidade, este termo surge nestes termos: a facilidade como o uso de um determinado produto é aprendido. Existem alguns autores que, em português, utilizam o termo «aprendibilidade» ou «aprendabilidade». Qual seria o termo mais correcto para learnability?

Resposta:

Dado que é legítimo formar o adjetivo aprendível, pode-se tomá-lo como base de derivação para a criação do termo aprendibilidade. A forma "aprendabilidade" não deve ser aceite, porque pressupõe *"aprendável" (* significa não aceitável), que não pode derivar regularmente de um verbo da 2.ª conjugação (comer > comível, entender > entendível; cf. Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Na frase «"Amanhã não vou às aulas", disse o João», penso que o segmento entre aspas desempenha a função de complemento directo: O João disse o quê?, razão pela qual a vírgula é obrigatória (regra que diz que quando o complemento directo precede um verbo declarativo do qual depende, então tem de haver vírgula). Por analogia, quando escrevemos a frase «"Qualquer dia nem podemos sair de casa", lamenta-se o meu vizinho de cima», qual é a função sintáctica do segmento entre aspas? E qual é a regência do verbo lamentar-se?

Já agora, podemos dizer «qual a regência do verbo (...)?», como tantas vezes ouvimos, ou temos de dizer «Qual é a (...)?»?

Desde já agradecida pela disponibilidade.

Resposta:

É pertinente a sua observação, porque, de facto, podemos considerar que, perante um verbo declarativo, a sequência em discurso direto se pode interpretar como complemento direto. No entanto, acontece que, em situações como estas, em que surgem sequências em discurso direto, a descrição gramatical considera que existe um tipo de articulação oracional particular, que é a justaposição, conforme teorização e descrição de E. Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, pág. 481):
 
«Também se incluem nos grupos oracionais como orações justapostas as intercaladas, também caracterizadas por estarem separadas do conjunto por pausa e contorno melódico particular. Na escrita, aparecem marcadas por vírgula, travessão ou parêntese. [...]:

1) citação: onde se acrescenta a pessoa que proferiu a oração anterior:

Dê-me água, me pediu o rapaz.

Quem é ele? — interrompeu a jovem.»

É, pois, possível empregar sem regência (isto é, sem complemento introduzido por preposição sem valor de dativo) o verbo lamentar-se nos contextos assim articulados.
 
Quanto a poder dizer-se «qual a regência?», sem verbo, assinale-se o comentário que Paul Teyssier faz no seu Manual de Língua Portuguesa (Coimbra Editora, 1989, pág. 161), sobre esta construção com o pronome interrogativo qual:
 
«pode mesmo empregar-se qual sozinho, p. ex.:
Quais são as suas preferências?
Quais as suas preferências?»