Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Uma grande dúvida no meio acadêmico veterinário é qual é o termo correto para a obtenção de amostras de sêmen ou fluidos como o sangue. Colheita, ou coleta? Estou confuso porque, para mim, colheita é para sementes, feno, etc. (mais ligado a isto, colheita de grãos como o trigo). Qual é o termo mais correto para amostras biológicas?

Resposta:

No contexto em apreço, ambas as palavras estão corretas; a diferença reside na variedade de português em que ocorram. Assim, no português europeu, usa-se «colheita de sangue/sémen» (também se usa «recolha de sangue/esperma»), reservando-se coleta para uma recolha de fundos (exemplos atribuídos ao português europeu no Corpus do Português de Mark Davies e Michael Ferreira):

«[...] a equipa deve ser constituída por três médicos, nenhum dos quais poderá pertencer nem às equipas de colheita nem de transplante [...]»;

«É, muitas vezes, nesse preciso momento que as pessoas sentem na pele a importância da colheita de sangue. [...]»

«A experiência consiste em fazer uma colheita no sangue de linfócitos T [...]».

No entanto, no Brasil, favorece-se «coleta de sangue», conforme se depreende da respetiva definição no Dicionário Houaiss, s. v. coleta: «ato de colher ou recolher (produtos, elementos, amostras etc.) para estudo, análise, exame etc. Ex.: c. de dados, de informações, de sangue.» No mesmo dicionário, a definição de colheita não associa esta palavra à recolha de líquidos orgânicos.

Refira-se, a título de curiosidade, que colheita e coleta têm o mesmo étimo latino: collecta, ae

Pergunta:

Qual é o significado/interpretação mais precisa do dito: «nem um órgão da Sé»?

Agradeço a ajuda.

Resposta:

Não encontro dicionarizada a expressão «nem um órgão da Sé». No entanto, ela ocorre em Arca de Noé – III Classe, uma obra do escritor português Aquilino Ribeiro (1885-1963):

«Daí a instantes rebentava um medonho ressonar. Devia ser o cão que passara a noite a correr pela quinta com medo que os larápios lhe fossem à horta ou ao meloal! Nem um órgão da Sé. [...]»

Neste contexto, «nem um órgão da Sé» é interpretável como «nem um órgão da Sé fazia tanto barulho (como o cão que ressonava)» ou como «alguém ressonava tanto que nem um órgão da Sé consegue fazer mais barulho». A expressão é, portanto, usada como hipérbole e constitui um termo de comparação, referente aos sons de grande intensidade produzido por qualquer órgão de uma sé, isto é, de uma «igreja episcopal ou patriarcal; catedral» (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora).

Pergunta:

De acordo com o Dicionário Terminológico, existe agora a «classe dos quantificadores», que partilha com os determinantes a característica de anteceder um nome.

Sendo que, na frase «Os quatro amigos...», «quatro» é um quantificador numeral, na frase «Quatro alunos foram estudar e quatro foram brincar», continuamos, no segundo «quatro», a ter um quantificador numeral com um nome subentendido? Não há pronomes numerais, certo?

Muito obrigada!

Resposta:

No caso da segunda ocorrência de quatro em «Quatro alunos foram estudar e quatro foram brincar», considera-se que se trata efetivamente de um quantificador numeral com elipse ou omissão do nome (cf. Olga Azeredo et al., Gramática Prática do Português, Lisboa Editora, 2011, p. 195).

Pergunta:

Gostaria de saber a origem do apelido Elias em Portugal.

Grato pela atenção.

Resposta:

Tem origem no nome próprio Elias, tal como muitos outros apelidos/sobrenomes. Este nome tem origem no hebraico Eliah, que significa «o senhor (é) Deus» ou «Deus é Jehovah»1, e foi transmitido ao português pelo grego (H)Elías e pelo latim (H)Elīas (José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa). A sua popularidade é devida ao profeta bíblico assim chamado. Em Portugal, nos tempos da Reconquista medieval, o uso do nome Elias está documentado como patronímico, quando antecedido do elemento árabe ben ou iben, «filho» (Machado, op. cit.).

1 O autor poderia ter usado a forma Jeová, mais de acordo com os princípios da ortografia do português. Note-se que outras fontes interpretam o nome como «o meu deus é Jehovah (ou Jeová)».

Pergunta:

A expressão «escrever à mão» tem mesmo crase, como tantas vezes vejo escrita? Se realmente tivesse, teríamos de dizer «escrever ao lápis» em vez de «escrever a lápis», para manter a coerência gramatical. Ou estou enganado?

Resposta:

Trata-se de expressões típicas do português, às quais não se pode exigir muita lógica, porque são resultado de processos históricos que podem ser fortuitos. No caso em apreço, há, mesmo assim, alguma lógica, porque se diz «escrever à mão», por oposição a «escrever à maquina» ou «escrever ao computador». «Escrever com lápis» é já uma especificação de «escrever à mão». Note ainda que, pelo menos, em Portugal, se usa «escrever a caneta/a lápis/a tinta». A respeito do português do Brasil, diga-se que igualmente se regista o uso de «escrever a lápis», sem artigo definido, exemplificando o uso da preposição a para exprimir meio, instrumento e modo (Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 307).

Cf.: Escrever à mão, porque não?