Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se tanto está correcto escrever-se «conhecer a verdade» como «conhecer da verdade». Em que situações se deve escrever de uma forma e de outra? E ainda, podendo ambas ser utilizadas em qualquer caso, porque existem as duas?

Muito obrigado.

Resposta:

O uso de conhecer com a preposição de («conhecer de alguma coisa») está correto, mas, como indica o Dicionário Houaiss, limita-se à linguagem jurídica, nas seguintes aceções: 1 «tomar conhecimento de.» Ex.: «jamais aceitou conhecer das recriminações que lhe eram imputadas»; 2 «tomar (o juiz) conhecimento de uma causa, acolhendo-a por ser competente para julgá-la.» Ex.: «este juiz não conhece da causa»; 3 «tomar (o juízo superior) conhecimento de um recurso interposto.» Ex.: «o Supremo conheceu do recurso.»

Pergunta:

Gostaria de saber como se escreve a expressão "Art Décor". Encontro com muita frequência a ocorrência de "Art Déco", não está errada? Devemos escrevê-la em itálico ou entre aspas na língua original, neste caso o francês, estou certa? E a maiúscula também é aconselhável por se tratar de um nome de um movimento artístico? Agradeço a atenção e aguardo atenciosamente a resposta com a máxima brevidade.

Resposta:

A expressão consagrada é Art Déco, escrita em itálico ou entre aspas, quando se trata de referir, conforme se regista no Dicionário Houaiss, um «estilo decorativo de artes aplicadas, desenho industrial e arquitetura caracterizado pelo uso de materiais novos e por uma acentuada geometria de formas aerodinâmicas, retilíneas, simétricas e ziguezagueantes [Representado em 1925 pela Exposição Internacional das Artes Decorativas, em Paris, teve seu apogeu nos anos 30, mas suas bases estéticas já haviam sido lançadas antes da guerra de 1914]».

Pergunta:

«Beija mão», ou beija-mão: escrevemos com hífen, ou sem hífen?

Resposta:

Com o significado de «ato ou cerimónia de beijar a mão», escreve-se beija-mão, com hífen (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora). O plural é beija-mãos (cf. idem).

Pergunta:

Num texto do Padre António Vieira [...], lê-se uma descrição do pecado que ele compara a uma cara horrível com «a garganta carcomida de alparcas». Qual o significado de alparcas? No Houaiss, no Aurélio e em outros dicionários só encontrei o sinónimo alpargatas, que, obviamente, não faz sentido no texto do Vieira.

Resposta:

Não é "alparcas", mas, sim, alporcas.

Trata-se de um erro de edição ou transcrição do texto consultado, em relação ao original de António Vieira (1608-1697), o Sermão da Publicação do Jubileu. O que se lê efetivamente é «garganta carcomida de alporcas». Alporca significa «escrófula» e tem origem em al- associado à palavra de origem latina porca, ae, «sulco, rego por onde escorrem as águas» (Dicionário Houaiss).

A palavra alporca é também sinónimo, no domínio da agricultura, de mergulhia, alporque ou alporcamento (estes dois vocábulos com o mesmo radical de alporca), «técnica de multiplicação vegetativa em que o caule ou ramo rastejante é coberto de terra, induzindo o enraizamento, e depois separado da planta que o originou», e, como termo relacionado com infectologia, significa o mesmo que «tuberculose linfática», «inflamação dos gânglios linfáticos cervicais, devida à tuberculose» (idem). No Diccionario de Arabismos (Editorial Gredos), de Federico Corriente, atribui-se etimologia híbrida a alporca, uma vez que o elemento al- remonta ao artigo árabe al- (presente em vários arabismos: alguidar, alqueire, alface), e porca tem radical latino, o que sugere que a palavra tenha surgido em português por transmissão de um dialeto moçárabe. Regista-se também o vocábulo derivado alporquento, «escrofuloso» (Dicionário Houaiss e Corriente, op. cit.).

Pergunta:

Envolver é um verbo com dois particípios passados: um regular – envolvido – e outro irregular – envolto.

O particípio regular emprega-se na voz activa, ou seja, acompanhado dos verbos auxiliares ter ou haver. Ex.:

«Ela está envolta no caso Quim Ribeiro.»

O particípio irregular emprega-se na voz passiva, ou seja, acompanhado dos verbos auxiliares ser ou estar. Ex.:

«Eu tinha-me envolvido com a Mónica.»

Na revista Sonangol Notícias de 2011 [p. 14], porém, leu-se esta informação:

«Em todas as áreas de negócio nas quais a empresa está "envolvida", a visão empresarial pauta-se pela eficiência e competência, alcance de uma posição de referência no mercado e actuação de acordo com os padrões internacionais.»

Tirem (vocês) suas conclusões se a revista Sonangol Notícias acertou ou errou!

Resposta:

Embora se diga geralmente que um particípio passado regular se usa com o auxiliar ter (ou haver, certos registos) e um particípio passado irregular se associa aos auxiliares ser ou estar, acontece que envolvido, particípio passado de envolver, é uma exceção e é compatível com todos os auxiliares. É o que Maria Helena de Moura Neves, no seu Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora Unesp, 2003), aponta:

«1. A forma envolvido é usada com todos os auxiliares. Quase pedi desculpas a Eurípides e Lutércio por -los ENVOLVIDO em encrencas alheias [...]. Francisco de Melo Franco já se havia ENVOLVIDO com o tribunal do Santo Ofício em 1779 [...] E, como a desgraça, quando acontece, vem aos cachos, menos de um ano depois Terry foi ENVOLVIDO na história do assassino Charles Manson. [...] O Gregório está ENVOLVIDO na morte do major Vaz. [...]

«2. A forma envolto é usada com os verbos ser e estar. O rosto liso como o marfim era ENVOLTO pelos cabelos ondulados, e por detrás da orelha brotava a flor de jambo [...]. O consumo excessivo de vitaminas, especialmente A e E, ainda está ENVOLTO em dúvidas. [...]»