Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estava eu estudando latim e percebi que alguns substantivos da língua portuguesa aparentam derivar sua forma não do nominativo, mas sim do ablativo, como em: pons, is, abl. ponTE; dens, is, abl. denTE; mons, is, abl. monTE; urbs, is, abl. urBE; avis, is, abl. avE; nox, is, abl. nocTE. Gostaria de saber como e por que causa se verifica essa aparente origem e também o porquê de nossa língua não ter declinações como o latim. Desde já agradeço-vos pela resposta e congratulo-vos pelo excelente trabalho de elucidar a língua nossa neste pantanoso terreno da Internet.

Resposta:

Em geral, os substantivos e os adjetivos do português provêm não do ablativo, mas, sim, do caso acusativo, com queda do -m final (é o chamado caso etimológico), tal como era típico do latim vulgar: PONTE(M) > ponte (os exemplos do consulente cabem todos neste tipo de declinação); CAUSA(M) > coisa; PORTU(M) > porto.

Existem, no entanto, vestígios do ablativo na etimologia de certos advérbios: HAC HORA > agora; HAC NOCTE > ontem.

Quanto à razão de a nossa língua não ter declinações como o latim, pensa-se que a evolução fónica muito contribuiu para confundir as diferentes formas dos casos. Sobre este assunto, leiam-se as respostas Sobre a evolução das palavras latinas para o português, Casos de novo e Traços dos casos latinos no português.

Pergunta:

Gostaria de saber como é que é correcto dizer: «passou a não ser mais nada senão um autómato», ou «passou a não ser mais nada que não um autómato»?

Obrigada.

Resposta:

A sequência correta é «mais nada senão um autómato», mas também pode dizer-se ou escrever-se «mais nada que um autómato» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, s. v. que, conjunção).

Existe, porém, «que não», com sentido de oposição ou adversativo: «Dá esse trabalho a outro que não a ele» (idem).

Pergunta:

Tenho ouvido muito sobre o feminino de elefante ser elefanta, mas esquecemo-nos de que o feminino da palavra elefante pode tanto ser elefanta como aliá, sendo esta última muitíssimo desconhecida para muitos, mas sendo a forma mais antiga.

Obrigado.

Resposta:

Regista-se efetivamente a palavra aliá (e a sua variante aleá) como designação de «elefante fêmea», conforme definição do Dicionário Houaiss, dicionário que a classifica como regionalismo (asiaticismo do Sri Lanca, ou seja, de Ceilão) e lhe atribui a seguinte etimologia:

«[Sebastião] Dalg[ado] refere que em cing[alês] há diversos nomes para elefante e que, em Sri Lanka, nenhuma fêmea tem presas e raros são os machos que os apresentam: "Os port[ugueses], que já conheciam na Índia o animal com dentes e lhe davam o nome europeu com o seu gênero próprio, ouvindo que os indígenas (no Ceilão) chamavam comumente aliya ao seu paquiderme, entenderam que tal era a denominação específica de ´todo o elefante sem dente, quer seja macho quer fêmea`...»

A mesma fonte indica que a palavra elefante está atestada desde o século XIV, aliá, desde princípios do século XVII, e elefanta, em 1844. Estas datações parecem confirmar aliá como palavra mais antiga que elefanta, apesar de a primeira ter uso muito restrito ou nulo na atualidade (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; o Corpus do Português de Mark Davies e Michael Ferreira não faculta qualquer ocorrência, o mesmo se verificando nos corpora da Linguateca).

Pergunta:

Verifico que alguns dicionários editados no Brasil registam as palavras surfar, surfista e surfe.

A minha pergunta é: como se pronunciam estas palavras no Brasil?

Muito obrigado pela vossa atenção.

Resposta:

As palavras surfe, surfista e surfar pronunciam-se no Brasil com o som -u.

Em Portugal, verifica-se certa variação. Por um lado, muitos falantes pronunciam estas palavras com "a" fechado (símbolo fonético [ɐ]):"sârfe", "sârfar", "sârfista"; o próprio dicionário da Academia das Ciências, publicado em 2001, dá conta de certa hesitação, quando transcreve com [ɐ] a forma surfe, mas apresenta com [u] o derivado surfista. Por outro lado, a tendência mais recente parece ser a de articular um [u] em todos estes casos, em convergência com a variedade brasileira. Dado que esta pronúncia é a que a letra u tem geralmente, pode-se considerar que estas variantes de surfe, surfista e surfar são mais coerentes do ponto de vista dos princípios que definem a correspondência entre ortografia e fonia em português.

Pergunta:

Estou trabalhando na tradução de um texto do filósofo alemão Immanuel Kant. Numa nota, ele se refere à descrição de Sumatra de William Marsden e cita um povo, cujo nome em alemão se escreve Rejangs. Consultei o texto do Marsden, cujo original é inglês, e a expressão pouco muda: Rejang. Não encontro nenhuma ocorrência da palavra vertida para o português. Gostaria de saber se há alguma sugestão para a tradução. 

Grato.

Resposta:

Relativamente ao etnónimo rejang, não conheço aportuguesamento de uso consagrado, mas parece-me possível adaptá-lo sob a forma rejangue, que é, aliás, a que ocorre numa obra sobre escritas, intitulada Letras e Memória – Uma Breve História da Escrita (São Paulo, Ateliê Editorial, 2009, pág. 158), de Adovaldo Fernandes Sampaio. 

Convém acrescentar que, em Portugal, continua a recomendar-se, em lugar de "Sumatra", a forma Samatra, que é a tradicional em língua portuguesa. No Brasil, impôs-se a forma Sumatra, como comprova o seu uso em definições de dicionários gerais – cf. Dicionário Houiass, s.v. bataque, «povo que habitra os planaltos de Sumatra»; ver também Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, 2004, s.v. orangotango, onde se diz que a palavra tem origem num «nome inicialmente dado, depreciativamente, pelos indonésios aos habitantes das montanhas e Bornéu e Sumatra»).