Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber em que contexto é que após pode ser um advérbio e quando é que é preposição. A dúvida surgiu nesta passagem: «Aquilo não era uma pouca de gente que se varresse assim sem mais nem ontem, de modo que os pelotões de polícia de intervenção progrediam com dificuldade e só conseguiram chegar ao Areeiro algum tempo depois, após muita cabeça partida e duas baixas nas suas hostes, de agentes que tinham sido sabiamente atraídos a vãos de escadas por populares mais expeditos.»

Muito obrigada.

Resposta:

No caso apresentado, a palavra após é empregada claramente como uma preposição, equivalente à locução prepositiva «depois de»: «... após [depois de] muita cabeça partida e duas baixas nas suas hostes».

Após é advérbio quando significa «em seguida» e não é complementado por uma expressão nominal. Cf. exemplos do Dicionário Houaiss: «"depois, em seguida". Ex.: "o trem parou e, logo a[após], ela desembarcou". Estatística: pouco usado. "atrás de si". Ex.: "passou, deixando um rastro de perfume a[após]".»

Pergunta:

Quais são os gentílicos de Bucara (cidade e província do Usbequistão), Samarcanda (também no Usbequistão), Chuváchia, Racássia, Udmúrtia, Cabardino-Balcária, Carachaievo-Circássia, Bascortostão (repúblicas da Federação Russa), Basã (região limítrofe com o antigo Israel), Assos (antiga cidade da Mísia), Trapezunte (antiga cidade do Ponto), Adamitio (antiga cidade da Ásia Menor), Sirte (cidade da Líbia), Jope (antiga cidade de Israel), Dardânia, Distrito Federal (Brasil), Amã (capital da Jordânia), Teerã (capital do Irã)?

Encontro a denominação ou qualificação para quem era membro de cada uma das tribos do Israel antigo, menos para quem pertencia à tribo de José, mas, por via das dúvidas, pergunto-vos se em português registra-se a denominação para o membro da referida tribo.

Muito obrigado.

Resposta:

Nenhum dos topónimos apresentados tem gentílico de uso consagrado, o que não admira, atentendo ao facto de se tratar de cidades (com exceção de Teerã/Teerão e Amã) que raramente são referidas no mundo de língua portuguesa a não ser em enciclopédias ou em textos especializados. Não havendo forma fixada pelo uso nem registada nos mais recentes dicionários ou em vocabulários ortográficos atualizados, o mais que se pode sugerir é a formação pontual de tais gentílicos de acordo com os processos de derivação característicos deste tipo de palavras, que já muitas vezes têm sido comentados aqui e que em síntese são descritos por Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 250) deste modo:

«Dos sufixos que entram na formação dos adjetivos pátrios e gentílicos, os mais usados são -ês ou -ense e -ão ou -ano, mas há muitos outros que se prestam a formar tais adjetivos [...].»

Não competindo ao Ciberdúvidas definir nem fixar a forma de geónimos estrangeiros e respetivos gentílicos, apenas comento alguns casos, com base no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves, o qual ainda hoje tem utilidade em matéria de fundamentar certas formas onomásticas:

Chuváchia – Rebelo Gonçalves (RG) não o regista; "chuvache" é uma possibilidade, mas discutível por problemas de transliteração (o dígrafo do português corresponde a segmentos grafémicos e fónicos da palavra russa original: Чувашия).

Udmúrtia: RG não regista; "udmurte" poderia ser uma possibilidade, que não encontro atestada.

Carachaievo-Circássia: RG só regista C...

Pergunta:

Surgiu-me uma dúvida que não consigo esclarecer, apesar da pesquisa que já fiz em dicionários, prontuários, no Ciberduvidas e na Internet. Trata-se da designação dada à comemoração de um facto que ocorreu 500 anos antes. Será "quingentenário", "pentacentenário", ou nenhuma destas?

Obrigado.

Resposta:

Em teoria, relativamente a 500 anos, a forma correspondente seria "quinquicentenário", atendendo a que o antepositivo que se associa a centenário é sempre de origem latina (daí, não ser aceitável "pentacentenário", porque penta- tem origem grega), como se confirma por bicentenário, tricentenário e quadricentenário (cf. Dicionário Houaiss). Contudo, a verdade é que, depois de quadricentenário, não se usam as formas correspondentes a 500 ou mais, pelo que se recorre a uma forma analítica: «quinto centenário», «sexto centenário», etc.

No entanto, se a questão se refere ao adjetivo ordinal, isto é, a 500.º, a palavra correta é quingentésimo (pronunciado "cuingentésimo"; transcrição fonética [kwȉʒȅ´tɛzimu], dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Deste modo, também poderá referir-se a comemoração da passagem de 500 anos sobre um dado acontecimento pela expressão «quingentésimo aniversário»

Pergunta:

Na frase «É uma profissão como as outras», como classificar «as outras»? Como locução pronominal indefinida?

Resposta:

Trata-se de um pronome indefinido que coocorre com o artigo definido.

Note-se que o Dicionário Terminológico (DT) prevê a coocorrência dos determinantes indefinidos pronomes com os artigos (ver B.3. Classes de palavras, B.3.2., Classe aberta de palavras): «Quando o determinante indefinido coocorre com artigos definidos ou indefinidos ou com determinantes demonstrativos, o valor definido ou indefinido da expressão nominal é o veiculado pelo artigo ou pelo determinante demonstrativo.» Por outro lado, o DT define um pronome indefinido como «uso pronominal de um quantificador ou de um determinante indefinido». Ou seja, se os determinantes indefinidos podem ocorrer associados com artigos definidos («as outras profissões»), os pronomes indefinidos correspondentes apresentarão a mesma possibilidade.

Pergunta:

No livro de Raul Brandão As ilhas desconhecidas existe um capítulo cujo título é «a pesca da baleia». Tratando-se de um mamífero e das técnicas de arpoamento, não será mais correto dizer-se «caça à baleia»?

Muito agradeço a vossa ajuda neste imbróglio marinho.

Resposta:

Não sendo a baleia um peixe, é claro que caça é mais adequado. E tanto é possível dizer ou escrever «caça da baleia» como «caça à baleia», pressupondo esta expressão esta outra: «fazer caça à baleia». Mas, tendo em conta que o texto em causa é literário e procura transmitir e recriar a experiência emocional do contacto com o espaço e as gentes dos Açores, não é de admirar que se use pesca, possivelmente em referência a um uso popular. Além disso, a aparente impropriedade lexical não será exclusiva de Raul Brandão ou da língua portuguesa: é de lembrar que, em Moby Dick, o célebre romance do norte-americano Herman Melville (1819-1891), o narrador, Ishmael, chega a afirmar, em jeito de provocação, que a baleia é um certo tipo de peixe, entendido como animal marinho (ver artigo na Wikipédia em inglês).