Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No segmento «Vinha todo enlameado...», o vocábulo todo pertence a que classe de palavras? Quantificador universal? Ou, do ponto de vista semântico, poderá ser considerado um advérbio de quantidade (?)/modo (?)?

Aguardo resposta. Obrigada.

Resposta:

Trata-se de um uso especial de todo que a descrição gramatical tem alguma dificuldade em descrever. Não é, por isso, um caso a utilizar em situações de avaliação e, a ser explorado, talvez só mesmo nos últmos anos do secundário, mas sem constituir conteúdo a avaliar.

E. Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (2003, pág. 198/199), considera que esse uso junto de predicativo ou modificador adjetival tem valor adverbial:

«Todo pode ser empregado adverbialmente, com valor de "inteiramente", "em todas as partes":

"Desculpe-me, que eu estou todo absorvido pela minha mágoa!" [..]

Suas origens pronominais facultam-lhe a possibilidade de poder, por atração, concordar com a palavra a que se refere:

O professor é todo ouvidos. Ela é toda ouvidos

Ele está todo preoocupado. Ela está toda preocupada.

Acabamos de ver as crianças todas chorosas.»

Ver também, noutra perspetiva, as respostas às Perguntas Relacionadas.

Pergunta:

Gostaria de saber se é correto escrever patrimoniar, com o sentido de se atribuir alguma forma de registro de patrimônio, como uma tarja de identificação de algo que pertence a uma instituição. Não encontrei a palavra no VOLP, Priberam e Aulete mas encontrei a palavra patrimoniado, significando que tem ou recebeu patrimônio.

Muitíssimo grato.

Resposta:

A palavra patrimoniado, «que possui ou recebeu patrimônio» (Dicionário Houaiss), está de facto registada em diversos dicionários gerais. A sua configuração, que é a de um adjetivo participial, pressupõe uma forma verbal, patrimoniar, que, não obstante estar bem formada, não se encontra dicionarizada.

Assinale-se, porém, que o significado de patrimoniado supõe interpretar patrimoniar como «possuir ou receber património», e não o significado de «fazer de alguma coisa património», como pretende o consulente. Esse novo significado, não sendo arbitrário, porque há modelos de criação lexical semelhantes – por exemplo, matrimoniar, «esposar», de matrimónio (cf. Diconário Houaiss) –, é uma total inovação, que exige a necessária difusão entre os falantes para se impor. Refira-se ainda que já se usa o vocábulo patrimonializar, que, no entanto, adquiriu um significado muito específico: «dar a alguma coisa o estatuto de património no contexto da cultura local, nacional ou mundial».

Pergunta:

Tenho dúvida quanto à ocorrência da crase na expressão «marcha a ré». O Dicionário Houaiss diz que não há crase e exemplifica com a frase: «prestes a concluir-se o acordo, uma das partes deu marcha a ré». Já outras fontes defendem o uso do acento grave nesse caso.

Qual é o parecer do Ciberdúvidas?

Resposta:

Há variação, pelo menos, entre o Brasil e Portugal:

a ré – no Brasil, sem crase, isto é, sem contração da preposição com o artigo definido, conforme se escreve no Dicionário Houaiss; em Portugal, o mesmo que marcha-atrás;
marcha à ré – em Portugal, usa-se à ré, com contração (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa; o mesmo que «parte traseira», «retaguarda», conforme se regista no Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, na versão em linha da Infopédia).

Esclareça-se que esta resposta constitui não um parecer, mas, sim, uma brevíssima descrição dos usos registados pelas fontes consultadas.

Pergunta:

Uma dúvida que já me persegue há algum tempo: no caso de um pronome pessoal que surja após uma oração intercalada a uma oração subordinada, deve-se usar próclise (pensando na oração original), ou ênclise (pensando na pausa causada pela intercalação)?

Num exemplo prático, qual das orações abaixo estaria bem escrita:

a. «[...] dos grupos que, conforme visto em outros autores, se têm formado [...]»

b. «[...] dos grupos que, conforme visto em outros autores, têm-se formado [...]»

Desde já, meus sinceros agradecimentos por quaisquer orientações a respeito!

Resposta:

Considera-se melhor a opção a., dado que a conjunção que atrai o pronome átono. No português europeu é mesmo a opção correta. Na perspetiva do português do Brasil, convém, no entanto, atentar no diz Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2003, pág. 588), a respeito da colocação do pronome átono numa oração subordinada (incluindo os casos que incluem uma intercalada):

«[...] Não se pospõe, em geral, pronome átono a verbo flexionado em oração subordinada:

"Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro." [...]

OBSERVAÇÃO: Quando se trata de orações subordinadas coordenadas entre si, às vezes ocorre a ênclise do pronome átono na segunda oração subordinada. Também quando na subordinada se intercalam palavras ou oração, exigindo uma pausa antes do verbo, o pronome átono pode vir enclítico: "Mas a primeira parte se trocou por intervenção do tio Cosme, que, ao ver a criança, disse-lhe entre outros carinhos..." [...] Em todos estes e outros casos que se poderiam lembrar, a ação dos gramáticos se tem dirigido para a obediência ao critério exposto, considerando esporádicos e não dignos de imitação os exemplos que dele se afastam.» 

Pergunta:

Solicito o favor de me informarem qual a palavra ou termo sinónimo de «falta de fio nos teares».

Obrigado pela atenção.

Resposta:

À falta de fio nos teares chama-se mingança, palavra que vem registada como regionalismo no Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (versão em linha na Infopédia). Também o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, e o Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, de Guilherme Augusto Simões, acolhem o vocábulo em apreço, com o mesmo significado.