Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de esclarecer uma dúvida sintática a partir de uma frase escrita por Fernando Pessoa:

«Sim, não há desolação, se é profunda deveras, desde que não seja puro sentimento, mas nela participe a inteligência, para que não haja o remédio irónico de a dizer.»

O trecho que mais me intriga é: «...mas nela participe a inteligência...»

Minha dúvida é quanto à natureza sintática e estilística dessa construção. Em português corrente, eu esperaria algo como: «...desde que nela participe a inteligência» ou «...a não ser que nela participe a inteligência», ou mesmo «...mas somente se nela participar a inteligência».

A forma usada por Pessoa – «mas nela participe» – parece deslocar-se do uso adversativo comum do mas e se aproximar de uma construção concessiva ou condicional elíptica, talvez por razões estilísticas.

Essa forma poderia ser considerada um galicismo sintático? Ou haveria influência do inglês, língua que Pessoa dominava e na qual também escrevia? Em inglês, construções como «There is no desolation, but that in it takes part the intelligence» seriam estilisticamente aceitáveis em prosa poética antiga, o que me faz suspeitar de possível interferência estrutural.

Gostaria de saber como se classifica esse uso do mas na gramática do português e se há paralelos em nossa tradição sintática ou se trata mesmo de uma licença poética.

Agradeço desde já pela atenção e pelos esclarecimentos.

Resposta:

Não é possível aqui confirmar que a construção usada por Pessoa é claramente uma construção decalcada do francês ou do inglês. Não temos, portanto, uma resposta categórica.

Tenha-se em conta que o Livro do Desassossego só foi publicado nos anos 80 do século passado, com base num manuscrito que não foi revisto pelo autor. É, portanto, natural, que ocorram por vezes algumas construções que se revelam mais discutíveis do ponto de vista sintático e semântico. Supõe-se, portanto, que, perante a sequência em causa, há uma formulação alternativa que pode ser mais natural em português:

(1) «... desde que não exista puro sentimento e nela participe a inteligência...»

Como a conjunção e tem vários matizes semânticos (é polissémica), podemos detetar certo valor adversativo na oração coordenada «e nela participe a inteligência», que poderia ser expresso pela locução «pelo contrário»:

(2) «... desde que não exista puro sentimento e [, pelo contrário,] nela participe a inteligência...»

Sendo assim, na frase em causa, a conjunção mas ocorre efetivamente com o seu valor adversativo próprio, mas, sintaticamente e do ponto de vista da coesão textual, seria de esperar maior coesão referencial entre as orações coordenadas pela locução «desde que». Por exemplo, seria também de esperar que, referencialmente, os sujeitos das orações coordenadas se identificassem: «desde que [essa desolação] não seja puro sentimento, mas inclua, sim, a inteligência».

Quanto à hipótese em inglês que propõe, não temos capacidade para a avaliar, mas afigura-se-nos uma conjetura difícil de verificar, na falta de outros textos pessoanos suscetíveis de revelar algum padrão de escrita indicativo de decalque.

Em suma, consideramos que o mas na frase em questão não deixa de ser adversativo. No entanto, a sua ocor...

Pergunta:

Recentemente, foi-me apontado um erro de regência verbal numa estrutura sintática semelhante a "Duas bicicletas chocam uma na outra". A justificação é a de que o verbo "chocar", com o sentido de "embater" não admite a preposição "em" e que só a preposição "com" é aceitável neste contexto. A única versão possível seria, portanto, "Duas bicicletas chocam uma com a outra".

Consultei o dicionário Houaiss (Círculo de Leitores, 2015) e constatei que o verbo "chocar" pode ser regido de três preposições, nomeadamente "com", "contra" e "em", mas o dicionário em questão não foi aceite como uma fonte confiável por se tratar de um trabalho de um autor brasileiro. Sem querer discutir a relevância desta referência que eu pessoalmente considero primordial e muito relevante para as questões linguísticas de todas as variantes da língua, na minha maneira de ver, qualquer uma destas preposições estaria correta, e "chocam uma na outra" teria o mesmo valor que "chocam uma com a outra" ou até de "chocam uma contra a outra".

Poderão ajudar-me a perceber se estarei errada?

Obrigada.

Resposta:

No português de Portugal, é corrente empregar chocar, na aceção de «embater», com as preposições com e contra: «os comboios chocaram um com o outro/um contra o outro»; «Estas cores chocam uma com a outra» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).  

No entanto, mesmo na variedade de Portugal, não é impossível, a construção «chocar em», como se atesta em obras que descrevem usos do português europeu. Por exemplo, no Dicionário Sintático de Verbos Portugueses (1994): 

(1) Aquele aselha foi chocar contra uma /numa árvore.  

No Dicionário de Verbos Portugueses (Textos Editores, 2007), de J. Malaca Casteleiro, também se abona esta regência de chocar:  

(2) O camião chocou no portão.  

Quanto ao uso do Dicionário Houaiss, é sem dúvida uma obra de grande qualidade e confiável, centrado nos usos e na norma do Brasil, e regista também usos de Portugal e dos países africanos. Mesmo assim, quando se escreve na variedade europeia, convém cruzar a informação do referido dicionário com a de fontes elaboradas em Portugal, como é o caso das obras acima citadas.

Pergunta:

A palavra terno em português do Brasil remete para a noção de «fato».

Em português (de Portugal pelo menos) terno remete para um tipo de cartas, aquelas com o valor 3.

Em inglês, suit remete tanto para a noção de «fato», mas também para a própria palavra «naipe», estando, aparentemente relacionada tanto com o significado brasileiro como com o português.

Eu gostaria de entender melhor qual a viagem etimológica destes termos e se estão efetivamente relacionados ou se esta coincidência é mesmo só isso. Por acréscimo, perceber a etimologia de duques, quadras, quinas, até biscas seria interessante, bem como saber se também estes termos são usados no Brasil.

Muito obrigado.

Resposta:

A palavra terno é de facto um coletivo numeral, com o significado de «conjunto de três», que denota quer um vestuário masculino composto de três peças (calças, colete e casaco) quer uma «carta de jogar ou dado com três pintas (terno de copas; terno de espadas; terno de ouros; terno de paus)» (cf. Dicionário Houaissdicionário da Academia das Ciências).

O termo ingês suit, por coincidência, também se relaciona com o campo lexical do vestuário, porque denotava um grupo de seguidores (suit vem do francês suite, relacionado com o latim sequi, que veio a dar seguir em português), bem como a combinação de peças de roupa que esses seguidores usavam. Desta última noção, suit passou também a ser usado na aceção de «uniforme» e, por extensão semântica, «classe de cartas que exibem o mesmo sinal (e que, portanto, se combinam no naipe)».

Que terno e suit se relacionem ambos com roupa é, portanto, mera coincidência.

Quanto a naipe é palavra de origem catalã (naip) que foi transmitida pelo castelhano (naipe) ao português (naipe também). O termo é de etimologia obscura, mas tem-se proposto a sua relação com o francês naïf, ou seja, «tolo, parvo» (Diccionari Etimològic Complementar, de Joan Coromines).

Quanto aos outros vocábulos mencionados na consulta, registamos o que se diz no Dicionário Houaiss:

duques: «orig.contrv.; para vários autores, o voc. teria a mesma etim. de duque, com divg. de sentido; para outros, o étimo do voc. é impreciso mas teria ligação direta com o num. lat. duo,ae,o 'dois, duas'»

quadras: «lat. quadra,ae 'quadrado, forma ...

Pergunta:

Depois de ter pesquisado sobre a origem dos termos náuticos bombordo e estibordo, entendo que são, com grande certeza, de origem germânica, mais propriamente do neerlandês, e que viajaram até ao português através do francês, provavelmente no séc. XV/XVI. Mas se a expansão portuguesa teve início ainda no séc. XIV, o que pedia que me ajudassem a descobrir é quais seriam os termos equivalentes que os portugueses usavam nessa época precisamente para bombordo e estibordo.

Resposta:

Nas fontes a que temos acesso não temos informação sobre os termos que se usavam antes do século XV para exprimir as noções denotadas por bombordo e estibordo. Aliás, é curioso constatar que noutras línguas ibéricas, como o espanhol (castelhano) e catalão, também os termos correspondentes têm a mesma origem nórdica e parecem estar só documentados a parti do século XV.

Sabendo que as navegações portuguesas também se entendem num contexto ibérico, seria de esperar que as fontes relativas ao espanhol e ao catalão pudessem facultar alguma informação sobre as palavras que precederam os termos espanhóis babor/estribor e os catalães babord/estribord. Na verdade não é isso, que acontece, e até é possível verificar, por exemplo, que no Diccionari Etimològic i Complementari de la Llengua Catalana, de Joan Coromines, revela-se que o registo de bombordo em português têm atestação mais antiga, embora estibordo figure mais tarde na documentação. Não será, portanto, impossível que bombordo e talvez estibordo tenham uso precoce em português, o que se compreende atendendo aos contactos comerciais frequentes com regiões costeiras mais a norte, designadamente a Flandres.

Dito isto, convém acrescentar que não em português mas em galego regista-se as expressões «banda de couso» (ou couse) como o mesmo que bombordo e «banda de arca», como sinónimo de estibordo. Note-se, porém, que se trata de usos regionais galegos, e não temos informação de que «banda de cousa/arca» fossem os termos usados no período galego-português da língua.

Não conseguimos, portanto, dar informação mais concreta so...

Pergunta:

Devemos escrever «escrito a quatro mãos» ou «escrito a duas mãos»?

Resposta:

Recomendamos «escrito a quatro mãos», embora a expressão, fora do domínio musical, possa ser equívoca.

O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, regista em subentrada «a quatro mãos», expressão apenas referente ao campo da música. Contudo, a Infopédia não indica o domínio concreto em que a expressão se usa e define «a quatro mãos» como «feito a par; por duas pessoas», dando assim margem para considerar «escrito a quatro mãos» a expressão correta.

No contexto da lexicografia brasileira, o Dicionário Houaiss também permite legitimar «escrito a quatro mãos», porque a define de forma não exclusivamente musical:

«a quatro mãos: 1 feito por duas pessoas. Ex.: um artigo, um livro a quatro mãos. 2 para ser tocado por duas pessoas no mesmo piano. Ex.: um arranjo a quatro mãos».

Finalmente, em Português – Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas (Edições João Sá da Costa, 1988), de António Nogueira Santos, regista-se «a quatro mãos», com a seguinte definição: «diz-se do que é feito por duas pessoas».