Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O nome Hamurabi é bastante citado na academia, sobretudo em trabalhos relacionados à história do Oriente Médio.

A minha dúvida é: qual a sílaba tônica do nome? Em teoria seria oxítono, dada a ausência de acento gráfico, mas se pronuncia como paroxítono e, se assim o é, não teria de ser acentuado na penúltima sílaba?

O nome foi de fato aportuguesado, já que perdeu a germinação do m (Hammurabi), sendo reduzido a um só, mas por que não houve acentuação?

Obrigado.

Resposta:

 A grafia e a pronúncia do nome da figura histórica em questão têm tido duas formas: 

Hamurabi, que é palavra oxítona, isto é, com acento tónico na última sílaba (cf. Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras);

Hamurábi, palavra paroxítona, isto é com acento tónico na penúltima sílaba (cf. Infopédia).

Convém assinalar que a forma Hammurabi, a mais corrente que este nome tem em inglês e francês, corresponde ao acádio Ḫammurapi, do amorita ʿAmmurāpi, um composto de *ʿammu («pai») +‎ *āpi («curador, curandeiro»), conforme se lê no Wiktionary. O 

Pergunta:

Em alguns dicionários, o verbo ticar nem se encontra dicionarizado. Noutros aparece como português do Brasil. Mas hoje em dia ouvimos muito o uso desse verbo para assinalar uma caixa, por exemplo.

É correto usar em Portugal? Ou é um brasileirismo? Ou até um anglicismo?

Resposta:

Ticar é uma palavra correta em Portugal, mas que parece mais adequada ao registo informal. É provável que seja um anglicismo adotado por via do Brasil, mas não se exclui que, em Portugal, tenha sido adaptado diretamente do inglês, de forma independente, como palavra emprestada.

De três dicionários elaborados em Portugal e atualizados – Academia das Ciências de LisboaInfopédiaPriberam –, só o Priberam regista ticar, juntando a seguinte informação:«verbo transitivo 1. [Brasil] Marcar com um tique para confirmar ou verificar. verbo intransitivo 2. [Brasil] Marcar com um furo para fazer a validação.»

Quanto a tique, como adaptação do inglês tick, na aceção de «sinal (de visto)», para referir o v que se escreve para indicar que alguma coisa foi revista ou confirmada, também só o Priberam apresenta registo.

O facto de tique e ticar terem registo mais antigo em dicionários brasileiros parece reforçar a atribuição do uso destas palavras em Portugal a empréstimo transmitido pelo português do Brasil. Contudo, não é de excluir que, em português europeu, ticar («escrever um tique») e tique (como na aceção de «sinal de visto») sejam aportuguesamentos diretos do inglês.

Pergunta:

Existem palavras em português afetadas pelo fenômeno da «pronúncia ortográfica», no qual a pronúncia de uma palavra é alterada por influência da ortografia e passa a se adequar a ela?

Se sim, quais são elas?

Resposta:

Existem casos de pronúncias ortográficas, que podem não ser comuns ao mundo de língua portuguesa.

Referem-se aqui alguns casos, sem o intuito de apresentar uma lista exaustiva.

Assim, por exemplo:

– A pronúncia com "ch" de intoxicar é um caso de pronúncia "ortográfica" incorreta.

– Outro caso é o de sintaxe, tradicionalmente, "sintasse", mas nas últimas décadas com /ks/ pronunciado, pelo menos, em Portugal.

Estes exemplos acima apresentados devem-se provavelmente à considerável variação da leitura da letra x.

Mais um exemplo, comum em Portugal, a ponto de os falantes pensarem que a forma correta de sempre tem /p/: Egipto, que em Portugal também se escreve Egito pela razão de existir "Egito" quer na pronúncia contemporânea quer na pronúncia mais antiga.

Pergunta:

Há alguns dias, no calor de uma discussão, ouvi uma expressão entre dois assistentes operacionais do meu serviço durante a pausa do pequeno-almoço. O facto é que que nunca tinha ouvido isso.

Não sei se a frase correta era:

(I) «estás aqui estás a alombar»

ou se era:

(II) «estás aqui estás a lombar»

Só sei que os meus colegas irromperam numa discussão entre eles e separaram-nos.

Poderiam dizer-me que significa, por favor?

Muito obrigada!

Resposta:

A expressão constitui uma ameaça de agressão:

(1) «estás aqui, estás a alombar» = «estás prestes a levar (uma tareia)»/«estás quase a ser agredido».

O verbo alombar significa literalmente «carregar às costas» (cf. Dicionário Priberam) e tem uso popular, até porque lombo pode num estilo muito informal significar «costas».

Ora, de maneira figurada (metafórica), alombar pode significar o mesmo que «levar uma tareia», «levar/apanhar um murro», «levar/receber pancada» ou qualquer outra situação de agressão.

Também popularmente, na pronúncia, é possível que alombar se reduza a "lombar".

Pergunta:

Dizemos «Essas atitudes raiam o excesso» ou «Essas atitudes raiam ao excesso»?

Obrigado.

Resposta:

Dizemos das duas maneiras, mas sobretudo da primeira.  

O verbo raiar, derivado de raia («risca, traço, linha, limite, fronteira»), ocorre geralmente conforme o esquema «raiar alguma coisa», com o significado de «tocar os limites» e funcionando como verbo transitivo direto, visto selecionar um complemento direto:  

(1) «raiar o excesso» (cf. raiar2 no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

Contudo, o verbo pode ter associado um complemento introduzido por preposição: 

(2) a: «atitudes que raiam à loucura» (Dicionário Houaiss).  

(3) por: «a pequena já raia pelos 15 anos» (cf. dicionário de Cândido de Figueiredo), «essa proposta raia pelo absurdo» (Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Pedro Luft).  

(4) em: «esse [cacófato] [...] raia na obscenidade» (cf. Dicionário de Verbos e Regimes de Francisco Fernandes).