Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

As expressões «primos paralelos» (filhos de irmãos do mesmo sexo) e «primos cruzados» (filhos de irmãos de sexos diferentes) são usadas em português europeu?

Muito obrigada.

Resposta:

Não são expressões correntes.

No entanto, são usadas em contextos especializados – por exemplo nesta frase que explica sinteticamente o que significam:

«A experiência social levou os antropólogos a distinguir os primos paralelos (relação entre filhos de irmãos de mesmo sexo) dos primos cruzados (relação entre filhos de irmãos de sexo diferente).» (Armindo dos Santos, "Particularidades do parentesco português: A memória do nome de família feminino e a sua outorga aos filhos", Revista Filosófica de Coimbra, n.º 34, 2008, p. 532)

Pergunta:

Gostava de saber qual o significado da expressão/provérbio: «Quanto mais prima, mais se lhe arrima.»

Obrigado.

Resposta:

É um dito, hoje controverso, que pode parafrasear-se assim: «o parentesco entre homem e mulher não inibem o desejo e os avanços sexuais (do homem)».

Tem registo, por exemplo, nas seguintes fontes:

– José Ricardo Marques da Costa, O Livro dos Provérbios Portugueses, Lisboa, Editorial Presença, 2004.

– Manuel Madeira Grilo, Dicionário de Provérbios, Município de Pinhel e Madeira Grilo, 2009.

– Maria Alice Moreira dos Santos, Dicionário de Provérbios, Adágios, Ditados, Máximas, Aforismos e Frases Feitas, Porto: Porto Editora, 2000.

Pergunta:

Em saúde, o u não faz parte da mesma sílaba do que o sa, mas faz, sim em saudável. Por quais motivos?

Muitíssimo obrigado.

Resposta:

Saudável pode pronunciar-se quer com a separação das vogais a e u ("sa-udável") quer com ditongo au ("sau-dável").

Em saúde, há de facto três sílabas, porque a sequência sa-ú se lê e pronuncia como duas sílabas. Etimologicamente, saúde vem do latim vulgar SALUTE, cuja sílaba tónica era -LU-. Na passagem ao galego-português, caiu o -L- intervocálico, mas o u manteve-se como núcleo silábico e preservou a tonicidade, determinando a pronúncia separada (hiato) do a da sílaba sa- e e de -u.

Este hiato mantém-se de certo modo no verbo saudar, que pode pronunciar-se "sa-u-dar", muito embora seja corrente a pronúncia já com a formação de ditongo: "sau-dar". Algo de semelhante ocorre em saudade, que, a par da pronúncia tradicional com hiato ("sa-u-dade", é hoje articulada geralmente com ditongo ("sau-dade"), apesar da censura de autores prescritivistas (ler resposta).

Com saudável, deveria acontecer o mesmo que se observa com saudar, levando a supor que a pronúncia mais antiga e, portanto, recomendável fosse "sa-u-dá-vel". No entanto, como esta pronúncia se revela talvez um tanto forçada, os falantes de português transformam as duas sílabas numa só, com ditongo: "sau-dá-vel". Se o Dicionário Houaiss e o Dicionário Priberam registam ambas as pronúncias, outras fontes já só consideram a que exibe o ditongo (cf. Infopédia e

Pergunta:

Diz-se «fazer a cama de lavado» ou «lavar os lençóis»?

Resposta:

A expressão «fazer a cama de lavado» não é sinónima de «lavar os lençóis». O significado de «de lavado», que ocorre tanto em «fazer a cama de lavado» como em «vestir de lavado», significa «mudar peças de roupa -- de cama ou de vestir -- com outras peças de roupa lavada». Os dicionários aqui consultados não registam esta expressão, mas ela encontra-se atestada, mesmo em obras literárias:

(1) «eles fazem a cama de lavado, trazem a roupa debaixo do braço» (Corpus de Referência do Português Contemporâneo: 1377, Corpus do Português)

(2) «Havia nessa noite visitas de cerimónia, a mãe vestira a miúda de lavado.» (Virgílio Ferreira, Aparição, 1959 in Corpus do Português)

Pergunta:

A peça de teatro Náufragos, de Fernanda de Castro (1900-1994), apresenta várias marcas do falar algarvio. Importa referir que toda a ação se desenrola em ambiente de pescadores. Assim, em contexto, solicita-se algum apoio no esclarecimento das expressões:

1. Emposta (será imposta/impostora?) – «Desde a Senhora da Encarnação que não me vê com bons olhos. Tudo por via do Amândio. Quando reparou nele a bailar comigo, pôs-se logo numa fúria, e vá de me tratar de falsa, de vadia e de emposta, defronte de toda a gente...»

2. Nágnas e Charlocas (náguas/anáguas e chalocas ?!) – Aquilo é que é uma bruteza. Ele são saias de pano fino, ele, charlocas bordadas, ele, nágnas de folhos, ele, corpos de chita…

3. Abiscámos (será um trocadilho popular com a ideia do isco) – Vou à do Bento… Andamos a concertar um negócio de sardinhas com os da fábrica… Já lhe abiscámos uma bruteza de encomendas. (à Rita) Anda daí Rita… Disse à Maria Rosa que te levava…

4. Brasalisco (será relacionado com inquietude?) – «Se desde mocinha me metes pena. Não te lembras? Quanto a gentinha caçoava dos trapos que te prantavam em riba, eu punha-te às cavalas, e fugia, fugia às carreiras até te fazer rir. Que chuvenisco tu eras, ó Mariana! Mesmo, mesmo um brasalisco.»

Pode, porventura, existir algum destes vocábulos mal escritos, uma vez que se retirou diretamente do manuscrito.

Resposta:

Respondendo pela mesma ordem:

1. "Emposta" é variante de imposta, forma do género feminino de imposto, que significa (ou significava) «enjeitado, exposto», isto é, «filho de pais incógnitos, geralmente abandonado».

2. A forma "nágnas" pode bem ser uma gralha, por náguas. Se sim – é bem provável – nágua ou anágua é «saia de baixo». "Charlocas" será deturpação ou variante de chalocas, sinónimo de cloques, «sapatos de ourelo».

3. "Abiscámos" não tem registo nas fontes aqui consultadas, mas sugere-se que tem que ver com catrapiscar, «namorar, conquistar».

4. Também não se achou registo de "brasalisco", mas parece sinónimo de chuvenisco, geralmente, o mesmo que chuvisco, mas no contexto em questão infere-se que é usado figurativamente como «pessoa, coisa pequena, minúscula». Não se encontrou atestação desta aceção nas obras de apoio.

Fontes: Revista Lusitana, Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves, e Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo.