Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No Brasil, há a expressão «no ponto».

Será que pode ser usada em termos mais gerais ou será que é preciso dizer «no ponto certo» na frase a seguir: «...crocante por fora, macia por dentro e no ponto certo»?

Obrigado.

Resposta:

Basta dizer «no ponto», embora também possa dizer e escrever «no ponto certo».

Note-se que a expressão «(estar) no ponto» também se usa em Portugal e noutros países de língua portuguesa e entende-se como «(estar) na forma ideal» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Sendo assim, não se incorre em nenhum erro se se optar pela seguinte formulação: «a massa está crocante por fora, macia por dentro e no ponto».

Pergunta:

Ouvi recentemente a expressão «primo carnal» como sinónima de «primo direito». Está correcta?

Não consegui encontrar a expressão dicionarizada (Porto Editora e Priberam) e, quanto à palavra carnal, esta só no sentido de consanguinidade poderia estar relacionada com o assunto de primos (não me parecendo que seja compatível com «primo direito»). Poderá ser regionalismo?

Obrigado.

Resposta:

A expressão «primo carnal» é praticamente sinónima de «primo direito».

No dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, associa-se à entrada do adjetivo carnal a expressão «primo carnal», com a seguinte definição: «que é do mesmo sangue; que tem parentesco chegado; sinónimos consanguíneo: "Não houve remédio senão mandar vir as licenças de Roma, porque eram primos carnais. Oito dias tinham durado as festas do casamento, como as das histórias de era uma vez..." (L. Dacosta, Vovó Ana, p. 201)»

Por outras palavras, carnal é sinónimo de consanguíneo e, portanto, a rigor «primo direito» é um caso mais específico de «primo carnal» (tecnicamente, diz-se que é um hipónimo). No entanto, na prática, entende-se que «primo carnal» é um primo com parentesco muito próximo como é o caso dos primos direitos, o que explica que na citação acima se fale de dispensa do Papa para o casamento de pessoas que são primos carnais, ou seja, primos-irmãos, que é como quem diz, «primos direitos».

Pergunta:

Sempre ouvi dizer quebranto, enquanto «mau olhado», «mal de inveja».

Mas já vi escrito "cobranto". Esta forma também existe?

Obrigada.

Resposta:

Quebranto é a forma correta.

Cobranto é uma deturpação, de uso popular, que pode ter entrada dicionarística, como acontece no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo (1846-1925), onde se regista o seguinte: «Cobranto m. Pop. Encantamento, quebranto.[...] (Alteração de quebranto).»

Acrescente-se que quebranto (e, claro, a variante cobranto) é sobretudo entendido numa das aceções que lhe atribui o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, juntando exemplos:

«3. estado mórbido, caracterizado por fraqueza, doença, desfalecimento, que, segundo crenças supersticiosas, é resultante do olhar de certas pessoas. Sinónimos: mau-olhado. Estava convencida de que lhe tinham deitado um quebranto. Foi à bruxa para se ver livre do maldito quebranto. Dar quebranto a alguém ou a algum animal; deitar-lhe quebranto "Velhos comentaram casos antigos, quebrantos, eventuais maus olhados." (M. de Carvalho, Guerra, p. 73) «Mas a bruxa encolheu-se mais no seu xalinho: – Sem a cachopa, posso é tentar quebranto em roupa que lhe ande mais chegada ao corpo.» (A. Ribeiro, Patrão, p. 133).»1

 

1 N. E. (10/05/2025) – As abonações provêm, respetivamente, de Mário de Carvalho, A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, 1.ª ed., Lisboa, Edições Rolim, 1983 e Aleixo Ribeiro, Patrão Bento, 1.ª ed., Estúdios Cor, Lisboa, 1962.

Pergunta:

Será que a tradução portuguesa para o francês «bien que» traduzida por «bem que» continua a ser um galicismo?

Costumo traduzi-lo por «apesar de» + infinitivo pessoal ou embora + modo conjuntivo mas ouço cada vez mais «bem que»...

Obrigada!

Resposta:

A expressão «bem que», mesmo que usada, continua a ser um galicismo a evitar. As traduções indicadas, com a locução conjuncional «apesar de» e a conjunção embora, são as canónicas e indiscutivelmente certas para introduzir orações concessiva. E é de notar que existe também a locução «se bem que», que evita a locução «bem que»

Dito isto, convém assinalar que «bem que» tem um uso mais enraizado no português, quando ocorre no seguinte contexto:  

(1) Bem que ele me disse que ia chover!  

Em (1), «bem que» significa «foi com razão que...».

Pergunta:

De acordo com a Wikipédia, a expressão "ala-arriba!" é própria da comunidade piscatória da Póvoa de Varzim.

Gostaria de saber se esta informação está correta e se, em todo o caso, tem também aplicação linguística fora desse contexto geográfico.

Muito obrigado.

Resposta:

Não se pode aqui confirmar que a expressão seja ou tenha sido exclusiva dos pescadores da Póvoa de Varzim.

Na verdade, a expressão registada encontra-se em fontes que a atribuem ou ao norte de Portugal ou à linguagem das atividades à beira-mar, ao longo da costa de Portugal continental:

– No dicionário de Caldas Aulete, na definição da interjeição ala («eia»), identifica-se as expressões «ala, arriba» (sem hífen) e «ala, ala» com o litoral norte de Portugal, e não especificamente com a Póvoa de Varzim:

(1) «Ala, arriba!, vamos, para cima! Cf. Arriba. || Ala! Ala! Ala 1. arriba! Exclamação em brinde, no fim de banquete e em outras festividades, principalmente em terras marítimas do norte de Portugal. »

– No dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, regista-se uma abonação de «ala, arriba» ou simplesmente "ala!", como interjeição e conforme usou Raul Brandão:

(2) «1. exclamação usada para incitar a puxar, a levantar alguma coisa: Ala! Ala! Ala, arriba! «Ala! Ala! Eh, rapazes! Oupa!» (R. Brandão, Pescadores, p. 32) 2. (Informal) exclamação usada para incitar à partida sem demoras ou para ordenar a alguém que desapareça: Ala! Vamos embora! Ala! Toca a andar! Ala! Fora daqui! ala, que se faz tarde; (Informal) frase exclamativa usada para incitar à fuga rápida, oportuna ou para ordenar a alguém que se apresse a partir: «o Lopes mandou seguir. Estava visto o que mais interessava – ala! que se faz tarde.» (Torga, Criação, p. 275) »

– No