Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Relativamente ao Aiurveda, encontrei em locais diferentes a palavra classificada como substantivo masculino e substantivo feminino.

Como tal, o que será mais correto dizer: «a Ciência do Aiurveda», ou «a Ciência da Aiurveda», tendo em conta que Aiurveda se refere a uma tradição médica? Também pesquisei a palavra com grafia semelhante ao original (Ayurveda) e apareceu-me em diversos textos em português, até mesmo com o A inicial como Ā (Āyurveda). Qual será então o modo mais correto de escrever esta palavra?

Resposta:

Deve dizer «a ciência do aiurveda» ou, num título, «A Ciência do Aiurveda».

Este substantivo é um termo que se aplica ao «sistema de medicina tracional indiana cujos princípios teóricos remontam aos Vedas (2000 a. C.-500 a. C.), porém com uma prática ainda viva nos dias atuais» e está registado como substantivo comum sob a grafia aiurveda no Dicionário Houaiss e no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Sendo esta forma um aportuguesamento bem formado, tanto morfológica como ortograficamente, não há, em princípio, razão para preferir o sânscrito Āyurveda, que é a transcrição da forma em alfabeto devanágari (आयुर्वेद). Refira-se ainda que, em inglês, se escreve Ayurveda.

Pergunta:

Existe na língua portuguesa uma tradução para a palavra italiana buonismo? Desde já muito obrigado!

Resposta:

Não me parece que haja um equivalente exato em língua portuguesa. Este termo italiano é relativamente recente: não deverá ter muito mais de 20 anos, e há quem diga que foi cunhado pelos ativistas da Liga Norte, partido italiano fundado em 1991. Ora, este partido, que começou a aparecer de forma mais consistente na cena política do país a partir de 1994, tornou-se conhecido pela severidade com que encarava a criminalidade e as formas de punição da mesma. O termo buonismo (derivado do adjetivo buono, que quer dizer «bom») destinar-se-ia então a tachar a atitude contrária relativamente à criminalidade, ou seja, uma postura paternalista ou condescendente no que toca a este fenómeno.

Trata-se de um termo encontradiço nos meios políticos e jornalísticos, se bem que o seu uso não se limite a estes níveis da língua. De modo geral, refere-se a uma aplicação magnânima ou benevolente das leis, embora o seu uso se estenda também a outros campos, sempre nesta linha semântica. Seja como for, é normalmente pejorativo, ou mesmo escarnecedor. Seguem-se dois exemplos da sua aplicação recente.

Por ocasião do trágico naufrágio ao largo de Lampedusa, que vitimou trezentas pessoas, houve um jornal italiano (Il Giornale, publicado em Milão e conotado com a direita) que na sua manchete falava em «Trecento morti di buonismo», à guisa de crítica às autoridades que, de forma benevolente, teriam alegadamente deixado essas pessoas entrar sem controlo no país. Nos últimos dias, fala-se novamente de buonismo em Itália, a propósito da situação nas cadeias, que estão sobrelo...

Pergunta:

De acordo com a tradição popular, a aldeia de Gesteira, concelho de Soure, distrito de Coimbra, teve origem numa povoação, situada nas redondezas, denominada Migalhó. Qual a origem e o significado de Migalhó?

Resposta:

Não se encontra registo deste nome no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, pelo que, não havendo disponíveis outras obras com as mesmas características, pouco se pode dizer sobre a sua origem, a não ser conjeturas.

Mesmo assim, pode-se supor que Migalhó tenha origem no uso toponímico do substantivo comum migalha, o qual se documenta no Sul de Portugal (na península de Setúbal e no Alentejo; idem). Migalhó seria a evolução de uma forma arcaica de diminutivo – *micaleola (aceitando que migalha vem do latim vulgar hispânico micalĕa, derivado de mica,  «pedaço, partícula, migalha, grão», Dicionário Houaiss) ou de outra forma, também hipotética, já tendo por base migalha, *migalhola (forma não atestada). De ambas as formas, seria possível a passagem do sufixo -ola a -oa e depois a -ó conforme tendência característica dos dialetos portugueses. Nestes, por contraste com grande parte dos dialetos galegos, contrai-se geralmente a sequência final -oa em -ó: MOLA > moa (galego) > (português); Figueirola (medieval) > Figueiroa (na Galiza) > Figueiró (em Portugal). Pela mesma lógica, é legítimo conjeturar que Migalhó pressupõe Migalhoa, forma que de resto parece estar documentada na zona de Soure. Dito isto, fica por esclarecer por que razão se havia de atribuir um nome assim a uma localidade, o qual historic...

Pergunta:

Por que razão a palavra ultrassom é derivada por prefixação, e neoliberal é um composto morfológico? Qual a distinção entre prefixo e radical (de acordo com o Dicionário Terminológico)?

Resposta:

Não é fácil distinguir prefixos de radicais, como já se explicou em resposta anterior (consultar também Sobre formação de palavras). Geralmente, um prefixo tem origem numa preposição habitualmente latina, como acontece com ultra- (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 88). Neo- é uma forma não autónoma considerada por vários gramáticos como radical (cf. idem, p. 111), mas os acordos ortográficos têm-lhe dado um tratamento especial, à semelhança do que acontece com outros radicais, incluídos num grupo de elementos de origem adjetival, análogos aos prefixos (Base XXIX, n.º 2 do Acordo Ortográfico de 1945, e Base XVI do Acordo Ortográfico de 1990). Em suma, a diferença entre prefixo e radical não é propriamente intuitiva, pelo que convém consultar as gramáticas de referência (a aqui consultada ou a Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara) para apurar de que modo uma dada forma não autónoma tem sido classificada.

Pergunta:

Antes de mais, queria felicitá-los pelo excelente trabalho que têm vindo a desenvolver e pelo apoio que representam para aqueles que, como eu, usam a língua como ferramenta de trabalho.

A minha dúvida surgiu a propósito de uma pergunta que me colocou uma aluna espanhola. Segundo ela, em espanhol, o uso da voz passiva é característico da linguagem jurídica. Gostava de saber se em português podemos afirmar que a voz passiva se caracteriza por ser usada em registos específicos da língua e quais seriam esses âmbitos de utilização.

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas palavras estimulantes.

Em português, verifica-se a mesma preferência que se associa à voz passiva no espanhol:

«Na linguagem oficial usa-se a voz passiva ou voz reflexa com valor de passiva, porque as determinações legais dirigem-se a uma massa passiva orientada superiormente por um órgão activo, que se adivinha sempre presente: o Estado. Assim se justifica o carácter impessoal dessa linguagem, para a qual valem, mais que as pessoas, os actos praticados por elas. Para exemplo, veja-se o art.º 529.º do Código Administrativo Português: "Sempre que um funcionário administrativo deixe de comparecer ao serviço durante cinco dias, depois de expressamente ter manifestado a sua intenção de abandonar o cargo, será pelo seu imediato superior hierárquico levantado auto de abandono do lugar." Não se diz o seu superior levantará», porque punha em evidência a pessoa do funcionário, quando o que mais importa acentuar é o acto, a função» (M. Rodrigues Lapa, Estilística da Língua Portuguesa, Coimbra Editora, 179, p. 190).