Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«É um cara meio esquisito, devo admitir, mas legal. Mesmo assim, você bateu nele! Por quê essa violência toda?»

Na frase acima, o acento circunflexo em «por quê» está correto? Não deveria haver uma vírgula marcando a elipse do verbo («Por quê, essa violência toda?»).

Obrigado.

Resposta:

Não é hábito usar «por quê» (em Portugal, porquê) seguido de vírgula à cabeça duma interrogativa sem verbo:

1) «Por quê a crise?»

No português europeu, também não se usa vírgula quando porquê é seguido de verbo no infinitivo:

2) «Porquê insistir nessa solução?»

A versão brasileira de 2) será «por que insistir nessa solução», em que se usa a locução interrogativa «por que».

Pergunta:

Tenho ouvido frequentemente a expressão «molhar a sopa», com o significado de «tomar parte em, experimentar» (ex: «aquele avançado tem um enorme faro de golo, está sempre a querer molhar a sopa»).

No entanto, tinha ideia de uma expressão semelhante, «molhar o pão na sopa». São ambas expressões correctas?

Resposta:

Ambas as expressões estão corretas, mas não significam exatamente o mesmo.

As duas locuções estão atestadas em dicionários de expressões idiomáticas ou populares (incluindo o calão).

Assim:

– o Dicionário de Expressões Correntes, de Orlando Neves, inclui «molhar a sopa», na aceção de «ter participação em algo; bater», e «molhar o pão na sopa», no sentido de «não perder a oportunidade»;

– em Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português, de António Nogueira Santos, apresenta-se «molhar a (sua) sopa» como o mesmo que «intervir em desordem, agressão, ataque; aliar-se a outras pessoas em críticas, censuras, maledicência»;

– o Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, de Guilherme Augusto Simões, consigna «molhar a sopa» com os significados de «bater; agredir; ajudar a dar pancada em alguém»;

– no Novo Dicionário do Calão, de Afonso Praça, regista-se «molhar a sopa», o mesmo que «ajudar a dar uma sova em alguém».

Em suma, parece haver consenso quanto a considerar que «molhar a sopa» significa «participar na agressão a alguém». Já «molhar o pão na sopa», que parece ter tido menor atenção dos dicionaristas, significa «aproveitar uma oportunidade».

Pergunta:

O verbo debitar selecciona que preposição: de, ou em?

Tenho ouvido e lido coisas como «debitar na minha conta», mas, como o sentido é negativo, de subtracção, diria que o de é mais apropriado (como em «concordar com» e «discordar de»).

Obrigado.

Resposta:

«Debitar na conta» não está incorreto.

Na verdade, conta significa «registo», e debitar, «lançar (um determinado valor) no débito (parte da conta)» (cf. Dicionário Hoauiss). Sendo assim, está correta a expressão «debitar na (minha/tua/sua...) conta», uma vez que se trata de lançar um determinado valor na conta de alguém. Regista-se também «debitar uma conta», «retirar dinheiro de uma conta para fazer face a um pagamento» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Acaba, portanto, por se revelar menos adequada «debitar de uma conta», porque debitar, a rigor, não tem a mesma semântica nem o mesmo comportamento sintático que subtrair, retirar (de), ou descontar (de).

Pergunta:

Desejo saber qual é a origem do -c- das formas perco, perca, percas... (do verbo irregular perder) partindo da forma latina, que tinha -d-: perdo, perdis, perdere, etc.

Obrigado.

Resposta:

Não parece haver uma resposta satisfatória.

Sabe-se que a forma perco (de cujo radical se formam a flexão do presente do conjuntivo: perca, percas, perca...) não parte, como é evidente, do verbo em latim clássico, mas talvez tenha surgido por analogia, como se defende em nota etimológica do Dicionário Houaiss (s. v. perder):

«latim perdo, is, dĭdi, ditum, ĕre, "perder, deitar a perder, causar a perda de, destruir, arruinar"; a 1.ª pessoa do indicativo presente perco, que não procede diretamente do latim perdeo > arcaico perço, se explica, segundo Williams, pela influência do antigo venco (atual venço), seu antônimo [...].»

Note-se que perdĕo é forma hipotética aceite por Edwin B. Wiliiams1 para explicar a forma perço do português e do galego medievais.

 

1 «Williams» é referência à obra de Edwin B. Williams, Do Latim ao Português, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001, pág. 233.

Pergunta:

Minha dúvida é sobre a regência do verbo auxiliar.

Devo dizer «este programa auxiliou a detecção de erros», «este programa auxiliou à detecção de erros», ou «este programa auxiliou na detecção de erros»?

O dicionário indica que auxiliar é transitivo direto, porém acredito que se considerem «pessoas» como objeto direto e «detecção de erros» como complemento.

Por exemplo: «Este programa auxiliou-nos na detecção de erros.» Ao se retirar tal objeto, a forma correta da construção apresentada seria, portanto, «este programa auxiliou na detecção de erros»?

Resposta:

Pode escrever com igual correção «este programa auxiliou a detecção de erros» e «este programa auxiliou na detecção de erros».

Com os significados de «contribuir (para)» e «facilitar», o verbo auxiliar pode ser usado quer como verbo transitivo direto quer como transitivo indireto; ex.: «a contenção da violência urbana auxilia a melhoria da imagem do país»; «a comunidade auxiliou muito na última campanha» (do Dicionário Houaiss).

O verbo em referência pode ainda ser utilizado noutras aceções (cf. idem):

– «dar auxílio a; ajudar, socorrer»: «auxiliou o acidentado» (transitivo direto); «auxiliamos os refugiados na remoção para outros países» (bitransitivo);

– «trabalhar junto a alguém mais experiente ou graduado, na qualidade de ajudante, assistente etc.»: «auxilia o chefe do departamento» (transitivo direto).