Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Relativamente à [palavra grega] peripéteia (mudança repentina de fortuna), qual é o adjectivo de peripécia? "Peripeciano", "peripeteico"? O que define estas terminações? Há algum padrão?

Resposta:

Os adjetivos em apreço não se encontram registados nos dicionários gerais de português consultados, nem nos de outras línguas próximas da portuguesa, como sejam o espanhol e o italiano. Mesmo assim, dado a palavra se relacionar com outra, peripécia, que aparece na língua portuguesa como cultismo com origem em peripéteia, do grego antigo, afigura-se legítimo usar a forma grega como base para formar "peripeteico", tal como é sugerido na pergunta. Note-se que em páginas da Internet se encontra o espanhol peripeteico.

Pergunta:

As palavras taquicardia e bradicardia surgem na maioria dos dicionários como paroxítonas. No entanto, são muitas vezes usadas na terminologia clínica como proparoxítonas, na maioria das vezes oralmente. Posto isto, há alguma evolução da língua que permita o seu uso com acentuação esdrúxula ("taquicárdia" ou "bradicárdia")?

Obrigado.

Resposta:

Taquicardia e bradicardia, que se pronunciam com acento tónico na sílaba -di-,são as formas corretas e as únicas registadas quer nos dicionários gerais quer nos vocabulários ortográficos. Contudo, é verdade que no uso se observam oscilações na fonia e na grafia do elemento -cardia, conforme se comenta no Dicionário Houaiss, s. v. -cardia:

«pospositivo, do gr. kardía, as, "coração" (tomado como se no voc. houvesse o suf. -ia, formador de subst. abstr.), em compostos da terminologia médica, quase exclusivamente do sXIX em diante: acardia, aclistocardia, atelocardia, baticardia, bradicardia, embriocardia, estenocardia, taquicardia; [...] a pronúncia -cardia () tende a estabilizar-se na língua de cultura, embora haja áreas regionais cultas ou segmentos sociais cultos que vacilem (-cárdia

As formas "taquicárdia" e "bradicárdia", não aceites pela norma, parecem dever-se a analogia do elemento -cardia com o elemento -cárdio, que se depreende do adjetivo grego perikárdios, on, «que está em volta do coração», e apresenta a variante -cárdia, formando pares como bucárdio/bucárdia, isocárdio/isocárdia e venericárdio/venericárdia (idem). Observe-se que, em espanhol, existem as formas etimologicamente correspondentes taquicardia e bradicardia, mas ambas com o acento tónico na sílaba -car.

Pergunta:

Seria possível esclarecer-me se as seguintes palavras se escrevem com hífen ou sem hífen:

meta-crítico; meta-reflexão; meta-análise; metacognitivo; metanarrativo; metadidáticas; metapráxica?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

A forma meta, como elemento de formação de palavras, é considerada um prefixo e, como tal, o novo acordo ortográfico prevê que só se use hífen quando o elemento seguinte começa por a ou h; ex.: meta-aprendizagem; meta-história. As palavras em questão escrevem-se, portanto, assim:

metacrítico, metarreflexão, meta-análise, metacognitivo, metanarrativo, metadidáticas e metapráxica.

No contexto do anterior acordo, o de 1945 (AO 45), o prefixo em referência aglutina-se sempre ao elemento seguinte, conforme prevê Rebelo Gonçalves, no Tratado da Ortografia Portuguesa (1947, pág. 76). Assim, entre as palavras acima indicadas, uma teria forma diferente à luz do AO 45: trata-se de metanálise, uma vez que se considera que o a de meta podia ser omitido na aglutinação ao elemento seguinte [cf. entrada met(a) – no Dicionário Houaiss].

Observe-se, contudo, que a forma metanálise se especializou como termo linguístico, na aceção genérica de «segmentação não etimológica de um vocábulo, locução ou enunciado, que foram interpretados pelos falantes de forma diversa daquela determinada por sua origem» (Dicionário Houaiss). Sendo assim, e voltando à aplicação do AO 90, se o termo se fixou com essa forma, parece agora descabido reanalisá-lo de modo a inserir um hífen. Trata-se de um caso a ponderar por quem...

Pergunta:

O que é um substantivo comum?

Resposta:

Segundo o Dicionário Houaiss, um substantivo comum é «aquele com que se denominam classes de seres ou coisas associados por sua essência, envolvendo sua significação, portanto, um conjunto constante de propriedades essenciais à sua classe (p. ex., mesa, verme, cachorro, preocupação, sentimento) [Algumas classes são formadas de um único elemento, como papa, janeiro, domingo etc.».

Em suma, é uma palavra que designa um tipo de objeto, animal, pessoa ou ideia, enfim, de qualquer realidade, concreta, abstrata ou imaginária, atual ou potencial.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem em que circunstâncias a palavra certamente é advérbio de afirmação e não de frase.

Surgiu-me a dúvida na seguinte frase, «Dobra o papel com cuidado, certamente vais conseguir», que eu considero de frase, mas que outras pessoas consideram de afirmação.

Agradeço a atenção.

Resposta:

O advérbio certamente pode ser um advérbio de frase (i) e um advérbio de afirmação (ii):

(i) «Certamente nossos pais eram também ferozes, de tremenda força...» (E. Queirós, Contos);

(ii) «Foi para os Olivais? Foi ter com ela? Certamente, pelo menos mandara a tipoia à quinta do Craft»

(exemplos de Clara Amorim e Catarina Sousa, Gramática da Língua Portuguesa, Areal Editores, 2011, pp. 207 e 210).

O caso em questão é o mesmo de (i), e, portanto, certamente ocorre aí como advérbio de frase.

Sobre (ii), convém observar que é discutível considerar certamente como um advérbio de afirmação. Com efeito, João Costa, em O Advérbio em Português Europeu (Colibri, 2008, p. 74), adverte que certamente, efetivamente e decerto não são verdadeiros marcadores de polaridade (isto é, do valor afirmativo ou negativo de um enunciado), porque podem ocorrer em frases negativas:

(iii) «Certamente o João não saiu.»

Além disso, é de assinalar que, na recente Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 1675-1678, vol. I), apenas se refere sim como advérbio de afirmação, ficando a descrição de certamente integrada na dos advérbios avaliativos (idem, pp. 1661/1662).