Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Pelo visto, estou ultrapassado. Aprendi há muito que pagado é um arcaísmo, embora o Saramago, talvez por influência do castelhano, do catalão ou do valenciano, o use com frequência nas suas obras. Quanto a o gastado e o ganhado terem dado o lugar a gasto e a ganho, também quando usados com o verbo ter, confesso-me surpreendido. Passou a ser norma? E as formas gastadoganhado são alternativas às simplificadas, quando usadas com o verbo ter, ou já ganharam o estatuto de arcaísmos?

A seguir, virá a aceitação da palavra “empregue”, que já vi num dicionário, e a da palavra  “encarregue”, que ainda não vi em nenhum.

Resposta:

Do ponto de vista normativo, o uso dos particípios passados gastado e ganhado é correto e faz-se de maneira igual à de outros particípios regulares, isto é, ocorrendo só com o auxiliar ter. Com o auxiliar ser, o particípio passado tem sempre forma curta ou irregular (gasto e ganho).

No entanto, há muito que certos gramáticos vêm assinalando a preferência do uso pelas formas irregulares destes particípios passados, mesmo em associação com o auxiliar ter («tinha gasto/ganho»):

– Vasco Botelho de Amaral, no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas da Língua Portuguesa (1958), observa que ganhado «vai rareando», e gastado, também.

– Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág.440) consideram que pagado foi substituído por pago, e ganhado com gastado tendem a ser substituídos pelas formas irregulares.

– Em obras exclusivamente elaboradas por gramáticos brasileiros, as posições podem não coincidir completamente: E. Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, págs. 229/230) inclui ganhado, gasto e até mesmo pagado ao lado das formas curtas numa lista de formas participiais duplas, mas deixa indicação de estas formas irregulares poderem usar-se tanto na passiva como nos tempos compostos. Maria Helena de Moura Neves (Guia de Uso do Português, 2003), procurando conciliar a tradição normativa com a observação do uso por meio de corpora, apresenta ganhado e gastado como formas pouco usadas.

Pergunta:

Gostaria de saber o que as fontes dizem sobre o aportuguesamento Ardaã da cidade turca de Ardahan. Em pesquisa no Google achei duas fontes que citam a forma em português, ambas brasileiras, e uma delas sendo de 2012.

Resposta:

É uma forma possível, mas acontece que a ortografia do português ainda aguarda a definição de critérios gerais de adaptação de topónimos estrangeiros por parte das entidades que monitorizam a sua normativização. Sem excluir a possibilidade de usar a forma turca e internacional Ardahan, e apesar de se tratar do nome de uma cidade pouco referida nos media em português, pode aceitar-se que a forma Ardaã está de acordo com os princípios da ortografia da língua portuguesa.

Pergunta:

Gostava de saber qual é a origem da expressão «ao tio ao tio», como quem se refere que anda «às aranhas» com algo. Ex: «Não vou andar por aí "ao tio ao tio" à procura dele.»

Obrigado.

Resposta:

Não dispomos de fontes que nos esclareçam as circunstâncias ou o contexto em que a expressão surgiu.

A forma que encontramos registada é «andar ó tio, ó tio», no Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (Publicações D. Quixote), de Guilherme Augusto Simões, que lhe atribui o significado de «à procura; de um lado para o outro» e uma versão mais completa – «ó tio, ó tio, passa pra cá barcaça» –, sem esclarecer a razão do aparecimento da expressão (história popular? alguma deixa do teatro popular?).

Orlando Neves (Dicionário de Expressões Correntes, Lisboa, Editorial Notícias, 2000) reitera o sentido dado à expressão por G. Augusto Simões, mas acrescenta-lhe outro: «andar sem posses, a pedir emprestado». António Nogueira Santos (Português – Novo Dicionário de Expressões Idiomáticas, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 2006) também regista este idiomatismo, interpretando-o de maneira sintética como «procurar alguma coisa por todos os lados, recorrendo ao auxílio de outras pessoas».

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da expressão idiomática «lançar a âncora».

Muito obrigado!

Resposta:

«Lançar âncora» significa «ancorar», «fundear».

A expressão está registada no Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa (Livraria Chardron e Lello e Irmãos, 1985), de Énio Ramalho. Também o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL) a regista como subentrada de âncora, aparecendo como sinónimo de «deitar âncora», que significa «fundear, aportar a algum lugar e aí permancer». Outras expressões sinónimas: «largar (a) âncora» (cf. Dicionário Houaiss) e «lançar ferro» (Énio Ramalho, op. cit. e dicionário da ACL). A expressão admite usos metafóricos que a tornam interpretável como «ligar-se (a alguma coisa)», «apoiar-se (em alguma coisa)» (exemplos dos corpora disponíveis na Linguateca):

(1) «Tendo por companheiros a segurança criativa de Wilbur Ware e a claridade rítmica de Elvin Jones (que seria um actor decisivo do renascimento de Flanagan na década de setenta com «Eclypso»), o pianista lança âncora num futuro que só a cegueira dos homens foi capaz de adiar por tantos e tantos anos.»

(2) «[...] (ao contrário do World Saxophone, cuja negritude lança âncora num maior equilíbrio da improvisação colectiva / individual), os membros do Rova não frequentam com assiduidade os segredos dos solos solitários (limitados, quase exclusivamente, a alguns interlúdios «ad lib») [...].

Pergunta:

A palavra rebicoque ou rebicoques não é reconhecida no dicionário da Priberam nem aparece na edição do dicionário da Porto Editora que possuo, mas sempre a usei e ouvi usar. Será um regionalismo? Devo evitá-la em textos para um público alargado?

Desde já, obrigada.

Resposta:

A palavra que menciona parece ser um regionalismo, que poderá usar no registo informal e até em certos textos literários. Nos dicionários de que dispomos não encontramos atestação, mas, apesar de não nos ter indicado o significado, parece semanticamente afim de rebicoa, «arrebitada» (Vítor Fernando Barros, Dicionário de Falares das Beiras, Edições Colibri/Âncora Editora, 2010).