Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Fernão Mendes Pinto, na sua Peregrinação, refere com alguma frequência tecidos de damasco roxo. Na altura, parece-me, obtinham-se tons de púrpura e vermelho, através de processos naturais, e indigo também, sendo ambos utilizados separadamente, mas não o roxo, que eu saiba. Por outro lado, parece-me que, quando ele fala de dignitários, seria o vermelho intenso a cor a utilizar, pois é a cor, por exemplo na China, reservada a classes altas.

Estou a fazer um trabalho de pintura sobre seda utilizando a linguagem dos vários lados por onde andou Fernão Mendes Pinto, e queria saber se o termo roxo, nele, e no séc. XVI, não seria o equivalente do rouge, em francês, do rojo, em espanhol.

Agradeço antecipadamente a resposta.

Resposta:

O substantivo e adjetivo roxo, geralmente designação da cor «tirante a rubro e violáceo» (Cândido de Figueiredo, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1913), já foi sinónimo de vermelho ou encarnado – e, de facto, ainda hoje há dicionários que registam roxo com esse significado, embora assinalando tratar-se de um arcaísmo semântico. Refira-se, por exemplo, que o mar atualmente denominado como mar Vermelho era chamado, no século XVI, mar Roxo, uso que a obra de João de Barros (c. 1496-1570) atesta (Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira):

«Espedidas estas pessoas e postas as cousas do governo de Goa em estado seguro, e o mais que convinha pera guarda das outras fortalezas da costa da Índia, como Afonso de Albuquerque tinha já apercebido as vinte velas da frota, em que esperava ir ao mar Roxo, foi-se embarcar na barra de Goa [...]» (João de Barros, Décadas da Ásia – Década Segunda I-X).

Em Camões (c. 1524-1580) encontramos roxo como sinónimo de vermelho, por exemplo, na expressão «roxo sangue», embora a respeito desta não seja de excluir certa intenção literária, podendo tratar-se de um emprego não representativo do português mais corrente de Quinhentos (ver mais abaixo comentário de Bluteau):

«Tanto que estas palavras acabou
O Mouro, nos tais casos sábio e velho,
Os braços pelo colo lhe lançou,
Agradecendo muito o ...

Pergunta:

Qual é a etimologia da palavra Faria?

Resposta:

Se a pergunta se refere ao apelido/sobrenome Faria, diga-se que este tem origem num nome de lugar em Portugal, Faria (Braga), famoso pelo seu castelo. A origem deste topónimo é obscura, para não dizer desconhecida – por exemplo, José Pedro Machado não o menciona no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa. Sobre este topónimo, a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura da Editorial Verbo refere o seguinte:

«[...] o documento mais antigo relativo a esta freguesia data de 1059. As Inquirições de 1220, 1258, 1290 (neste ano aparece pela 1.ª vez parrochia Sancte Marie de Faria Antiga), 1320, 1371 referem-se-lhe com pormenores de grande interesse. Em 1528, Santa Maria de Faria estava anexa à Igreja Colegiada de Barcelos.»

Pergunta:

Gostaria que esclarecessem a minha dúvida acerca da forma correta de escrever "Eufêmia" – ou será "Eufémia"? Eu sempre pronunciei "ê". Por uso julgava que esta era a forma correta, mas será que existem as duas grafias?

Resposta:

Com o novo acordo ortográfico pode escrever Eufémia ou Eufêmia, conforme se estipula na Base XI, 3.º:

«Levam acento agudo ou acento circunflexo as palavras proparoxítonas, reais ou aparentes, cujas vogais tónicas/tônicas grafadas e ou o estão em final de sílaba e são seguidas das consoantes nasais grafadas m ou n, conforme o seu timbre é, respetivamente, aberto ou fechado nas pronúncias cultas da língua: académico/acadêmico, anatómico/anatômico, cénico/cênico, cómodo/cômodo, fenómeno/fenômeno, género/gênero, topónimo/topônimo; Amazónia/Amazônia, António/Antônio, blasfémia/blasfêmia, fémea/fêmea, gémeo/gêmeo, génio/gênio, ténue/tênue

As grafias Eufémia e Eufêmia não resultam de nenhuma arbitrariedade, porque já no anterior acordo (o de 1945) se considerava que este nome podia ter vogal tónica aberta ou fechada, apesar de apenas se admitir a forma Eufémia. Com efeito, esta grafia, consagrada pelo acordo de 1945, tem a particularidade de o acento agudo não indicar timbre aberto da vogal, mas apenas a tonicidade da sílaba em que ocorre. Refira-se que, em 1947, Rebelo Gonçalves, no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (págs. 168/169), se referia a esta particularidade do uso do acento agudo:

«As palavras proparoxítonas em que as...

Pergunta:

Se (aparentemente) existe um consenso entre os filólogos da certeza das formas "menistro" e "vezinho" ao ler ministro e vizinho, o que dizer "deregir" ao ler dirigir, como já se ouve na televisão?

Muita força para o Ciberdúvidas!

Resposta:

Trata-se da generalização da passagem de todos os ii átonos a e mudo. É possível que a pronúncia tenha surgido com base na 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo – dirige –, que em Portugal pode pronunciar-se "derige", com e mudo na primeira sílaba por efeito de uma regra de dissimilação numa sequência de dois ii seguidos, tal como se verifica na pronúncia-padrão (cf. Filipe, que soa "Felipe" e até "Flipe"). Com base no radical desta forma, é possível que muitos falantes apliquem novamente a regra de dissimilação no infinitivo do verbo, dirigir, talvez pressupondo que o verbo tem a forma "derigir".

Este fenómeno é claramente um desvio à pronúncia-padrão do português de Portugal.

Pergunta:

Gostaria de saber se [as palavras palavras então e ] podem ser usadas como adjetivos, ou advérbios adjetivados, como nas frases «o então presidente da República», «os então professores da escola», referindo-se, geralmente, a uma época passada, conforme tenho observado; «os já funcionários da empresa», ao se falar, por exemplo, de estagiários da empresa que recentemente passaram a ser funcionários, em relação a outros estagiários que ainda não são, mas que brevemente serão: «os ainda não funcionários da empresa». [...]

Sem mais, por ora, desde já agradeço-lhe(s) a atenção e consideração.

Resposta:

O uso de advérbios como modificadores de substantivos é correto. Encontra-se, por exemplo, descrito na Gramática do Português (ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 1574):

«[...] [A]lguns advérbios, entre os quais um pequeno número com valor semântico temporal ou locativo, podem ocorrer no interior de sintagmas nominais cujo núcleo é um nome eventivo ou denotador de um cargo, função ou profissão, funcionando como adjuntos adverbiais, ainda que de forma limitada (e marginal para alguns falantes), como se ilustra nos seguintes exemplos:

(10) a. [O então catedrático da cadeira de Introdução aos Estudos Linguísticos], o professor Lindley Cintra, foi o presidente do júri.
          b. Lá temos de aturar de novo [a sempre solícita secretária].
          c. Não tarda muito, [o ainda ministro] vai para a rua.
          d. [O jogo [aqui/no Estádio da Luz] vai ser muito difícil.
          e. [a greve [ontem/na semana passada] teve um sucesso retumbante.»