Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Acabo de ver, por acaso, a vossa resposta n.º 17 034 e gostaria de manifestar minha estranheza pelo facto de este site, sistematicamente, impor a pronúncia do chamado português europeu padrão (baseado na pronúncia de Lisboa), obliterando as outras realizações de pronúncias da língua portuguesa. Estou a falar, neste caso concreto, da pronúncia do ditongo escrito em que é só (e apenas só) na região de Lisboa que tem a pronúncia [ɐ̃j]. No resto de Portugal, não é pronunciado assim e em outros países de expressão portuguesa (como meu caso) também não. Por isso, eu acho estranho que o Ciberdúvidas não alerte que em outras variantes do português palavras como «têm, veem, vêm, deem, etc.» não são pronunciadas com dois ditongos, um a seguir ao outro ['ɐ̃jɐ̃j], mas são pronunciadas com uma vogal seguida de um ditongo ['eẽj].

Espero ter, humildemente, dado um contributo com esta pequena chamada de atenção e que eu esteja enganado ao pensar que o Ciberdúvidas quer «impor» a pronúncia lisboeta a não lisboetas e a não portugueses.

Resposta:

Quando se fala da norma-padrão de Portugal, os estudos gramaticais e linguísticos consideram geralmente que a pronúncia do ditongo grafado -em/-ém ou -ens/-em é a mesma do ditongo que ocorre na palavra mãe. Assim afirmam Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, 49): «[ãj]: correspondente às grafias ãe, ãi e, no português normal de Portugal em (em posição final absoluta) e en (no interior de palavras derivadas): mãe, cãibra; no português normal de Portugal: vem, levem, benzinho1

Não se trata, portanto, de uma imposição do Ciberdúvidas, mas antes de um aspeto que se considera característico da língua-padrão, a qual, por definição, exclui outras possibilidades e outras realizações de um mesmo sistema linguístico.

Apesar disso, é verdade que não se pode esquecer o facto de, a respeito dos ditongos nasais representados pelas grafias já indicadas, existir variação, como, aliás, se refere numa resposta anterior (nota 1). Deve, portanto, tomar-se devida nota da observação do consulente, que, do ponto de vista dialetal, tem toda a pertinência não só em relação ao Brasil, mas também aos falares de Portugal (regionalmente), Angola, Moçambique e de outros países.

1 É o que se afirma em A Pronúncia do Português Europeu (2006), disponível em linha nas páginas do

Pergunta:

«... deslocavam-se depressa mas em silêncio, o corpo ereto, à escuta enquanto caminhavam, apoiando-se ligeiramente nos calcanhares, baléticos nos movimentos, como se dançassem no mato em vez de andarem.» O Último Comboio para a Zona Verde, livro de Paul Theroux.

Balético existe no dicionário?

Resposta:

Nos vários dicionários a que temos acesso (impressos e em linha) e nos vocabulários ortográficos atualmente disponíveis, a palavra não está registada. Mas a verdade é que ela tem sido usada quer em textos literários quer em textos jornalísticos, estando documentada desde os anos 70 do século passado – Corpus de Referência do Português Contemporâneo. Além disso, é palavra bem formada, visto constituir um derivado sufixal do francês ballet, «dança artística», cuja adaptação ao português é balé (cf. Dicionário Houaiss). Digamos, portanto, que a palavra é legítima e que a sua ausência dos dicionários é uma lacuna que deve ser preenchida.

Pergunta:

Na minha área de investigação/ensino tem vindo a crescer nos últimos anos a utilização da palavra maltrato não como tempo verbal do verbo maltratar («eu maltrato») mas como substantivo, em substituição de «mau trato»/«maus tratos» (por exemplo, o maltrato físico). Não me parece uma utilização correta, mas, face à generalização do seu uso, gostaria de ter a vossa opinião – é correta, ou não, a utilização do termo nesse sentido?

Muito obrigada.

Resposta:

A palavra registada é maus-tratos, e não "maltrato". Os dicionários consultados apresentam-na com hífen e apenas no plural, atribuindo-lhe o significado de «delito de quem submete alguém, sob sua dependência ou guarda, a castigos imoderados, trabalhos excessivos e/ou privação de alimentos e cuidados, pondo-lhe, assim, em risco a vida ou a saúde» (Dicionário Houaiss; ver também Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

Refira-se que a forma maltrato não figura como substantivo na maior parte dos dicionários a que temos acesso (impressos e em linha). Mas assinale-se que num dicionário brasileiro relativamente recente – Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (1.ª edição de 2004) – se acolhe a entrada maltrato, definida como «uso de violência física no trato com alguém» e «tratamento duro e ofensivo, insulto». Mesmo assim, numa perspetiva normativa mais conservadora, não se reconhece à forma maltrato o estatuto de substantivo (por derivação regressiva de maltratar), sendo ela antes interpretada como 1.ª pessoa do singular do verbo maltratar.

Em suma, como se levantam dúvidas quanto à correção de maltrato, a forma maus-tratos ainda se afigura como a mais adequada.

 

Pergunta:

Gostaria de saber que tipo de orações são as seguintes subordinadas que não têm nem verbo nem sujeito, e com quais conjunções podem ser construídas: «Quando possível,...», «Embora proibido,...», «Se necessário,...», «Apesar de confiantes,...». Se possível, gostaria de saber onde poderia achar mais informação sobre este tipo de construções.

Muito obrigado.

Resposta:

As orações adverbiais referidas na pergunta são um tipo de elipse, em que é possível omitir o verbo de ligação, porque ele «é inferível a partir da estrutura linguística em que ocorre» – cf. Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 2352), e Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho (2003, p. 874/875).

Assim, «quando possível,...» é uma oração adverbial temporal elíptica; «se necessário,...», uma oração adverbial condicional elíptica*; e «embora proibido,...» e «apesar de confiantes,...» são orações adverbiais concessivas elípticas*.

 

eliptica, em Portugal + PALOP e Timor-Leste, enquanto no Brasil se registam as duas formas, com p e sem p: eliptica e elítica

 

Pergunta:

Recentemente a empresa Knorr lançou no mercado um concentrado para molho culinário a que chamou «Molho Cervejeira». A razão do nome deve-se ao facto de ter como ingrediente principal a cerveja.

Em minha opinião trata-se dum erro de português já que a palavra molho é masculina, logo, teria de ser «Molho Cervejeiro» ou «Molho da Cervejeira».

Gostaria de saber a vossa opinião sobre este tema.

Muito obrigado.

 

Resposta:

Efetivamente, o uso tradicional da palavra molho é feito com um adjetivo ou uma expressão que exprimam o aspeto, o ingrediente ou o modo de preparação que o distinguem: «molho branco», «molho de tomate», «molho à espanhola». Contudo, há exceções: «molho béchamel», por exemplo, em que béchamel não é historicamente um adjetivo (embora usado como tal)*, mas, sim, um substantivo que se justapõe como um aposto especificativo, como se à palavra molho se juntasse um nome que se comporta como uma marca, à semelhança de «molho Worcester» ou «molho Worcestershire», mais conhecido como «molho inglês» (esta expressão está mais generalizada, muito provavelmente pela dificuldade de leitura do topónimo inglês). Mas estes últimos exemplos obrigariam a que Cervejeira fosse interpretado como substantivo, pressupondo a existência de uma cervejaria ou uma fábrica de cerveja chamadas «a Cervejeira», e se escrevesse sempre com maiúscula, como nome próprio, de modo a permitir a referida justaposição: «molho Cervejeira». Caso não se use cervejeira como aposto, a alternativa será reconhecer que a palavra é adjetivo e pode haver erro de concordância, sendo necessário afeiçoá-la ao padrão tradicional, por exemplo, «molho cervejeiro» ou «molho à cervejeira» (neste caso, a maiúscula não seria obrigatória). 

* O caso de «molho béchamel», de que o Dicionário Houaiss faz o aportuguesamento bechamel, classificando a forma como um substantivo, configura o uso adjetival dessa palavra para modificar molho. O empréstimo béchamel vem do francês, tendo origem no nome próprio Béchamel, apelido do gastrónomo francês Louis de Béchamel (1630-1703), marquês de Nointel - cf.