Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho dúvidas sobre a forma correta em português que devo usar para designar uma das línguas minoritárias deste país, falada pelo povo da Lapónia. Qual é a designação correta: «sámi», «saami», «laponês», ou outra?

Obrigada!

Resposta:

Os termos mais tradicionais – quer como etnónimo quer como designação da língua – são lapão (cf. Dicionário Houaiss e Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras) e lapônio (idem). Em Portugal, também se recomenda lapónico (cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966).

Acontece que, como as formas correspondentes noutras línguas europeias (espanhol lapón, francês lapon), o termo lapão tem origem, por via do latim, no sueco ou finlandês lapp, que o povo assim chamado considera pejorativo. Por essa razão, reivindicam desde há algumas décadas o uso de uma forma nativa de origem incerta (talvez afim do nome que em finlandês se dá à Finlândia, Suomi; cf. artigo em inglês na Wikipedia), que tem variantes em inglês: sámi, sami e saami. Em português, a adaptação correspondente também não estabilizou, mas dado que as formas inglesas têm todas acento tónico na penúltima sílaba e a grafia aa, que visa representar uma vogal longa, não é relevante para o português, que não tem quantidade vocálica, a forma sámi (ou sâmi no Brasil, mas também possível nos outros países de língua portuguesa) acaba por se salientar como a mais adequada.1 Convém, no entanto, aguardar a decisão das entidades que intervêm oficialmente na fixação da norma.

1 É possível adotar sem alteração a forma saami e escrever saami, grafia que, no entanto, será interpretada como palavra aguda ("saamí"), e não como grave, visto que uma palavra gráfica terminada po...

Pergunta:

Encontrei uma frase e não sei qual a forma adequada dos verbos:

«E se eles ______ (ter) algum desastre? Não ______ (ser) melhor telefonar para a polícia?»

A chave que tenho é tiveram e seria, mas não sei porque é que não se usa conjuntivo no primeiro [espaço em] branco.

Obrigada.

Resposta:

Quando formula uma interrogativa introduzida por «e se...?», o verbo fica no indicativo se se referir à situação de comunicação do locutor:

(1) «E se eles não estão em casa? O melhor é/será telefonar primeiro.»

(2) «E se eles já saíram? O melhor é/será telefonar» (o pretérito perfeito do indicativo é usado para indicar passado próximo).

No entanto, num contexto de narração, por exemplo, no discurso indireto livre (quando um narrador como que reproduz o discurso de personagens), é possível usar quer o indicativo quer o conjuntivo:

(3) «E se eles já tinham/tivessem saído? O melhor seria telefonar.»

Quanto à segunda interrogação – «Não ______ (ser) melhor telefonar para a polícia?» –, o verbo pode encontrar-se no futuro ou no condicional, quando se trata do discurso direto ou da situação de comunicação em que se encontra o locutor:

(4) «João disse:

     – E se eles tiveram algum desastre? Não será/seria melhor telefonar para a polícia?»

     (discurso direto)

(5) «E se eles tiveram algum desastre? Não será/seria melhor telefonar para a polícia?»

     (situação de comunicação)

Se se tratar de discurso indireto livre, só se aceita o condicional ou o imperfeito:

(6) «E se eles tivessem/tinham tido algum desastre? Não seria/era melhor telefonar para a polícia?»

Pergunta:

Por que razão é considerado incorreto uma mulher dizer «o meu homem» em vez de «o meu marido», ao passo que um homem deve dizer «a minha mulher» em vez de «a minha esposa»?

Resposta:

O caso apontado é uma questão de sociolinguística, que diz respeito à distribuição e à avaliação de palavras e expressões por níveis de língua e pelos chamados socioletos, ou seja, os estilos discursivos característicos dos vários grupos sociais. Nesta resposta, não poderemos apresentar uma justificação baseada em circunstâncias históricas concretas, porque muitas vezes o uso de uma palavra ou expressão depende também de uma avaliação que é aceite coletivamente sem grande discussão (a não ser, quando, por exemplo, ocorrem mudanças sociais bruscas, em que grupos e indivíduos são levados a questionar os próprios usos linguísticos estabelecidos).

No português-padrão de Portugal e nos meios urbanos, nas classes média e alta, as expressões usadas e historicamente recomendadas são de facto «o meu marido» (não o «meu homem») e «a minha mulher». Nota-se, porém, que, a despeito de o discursivo normativo considerar como afetada e referencialmente desadequada a expressão «a minha esposa» («esposa» seria a noiva, a prometida que se desposa), o certo é que em certos meios essa forma continua bem viva quando se pretende conferir maior cortesia ao discurso; daí o frequente «cumprimentos à esposa», que, não obstante, muitos podem achar de mau gosto ou piroso.

Ainda sobre mulher, acrescente-se que as outras línguas românicas se assemelham ao português quando, ao contrário do que acontece com o par marido/homem, disponibilizam a mesma palavra quer para «mulher casada» quer para «ser humano do sexo feminino». Por exemplo, o espanhol distingue marido de hombre, mas apresenta mujer nos dois casos; e, em francês, que também marca a diferença entre mari...

Pergunta:

Quanto à construção abaixo, como classificar a locução «quanto mais» no contexto?

«Mal consigo andar agora, quanto mais correr, meu filho.»

Resposta:

Trata-se de uma locução adverbial: «Mal consigo andar agora, quanto mais correr.»

O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa refere sobre esta locução adverbial: «ainda mais; ainda com maior razão ou intensidade (usa-se com valor de reforço ou intensificação de um elemento, relativamente a outro ou outros)», sendo equivalente a mormente, principalmente, «que fará» (exemplo da fonte consultada: «Conduzir a velocidade elevada é perigoso, quanto mais embriagado»).

Pergunta:

Nos últimos dias verifiquei que, nas notícias relativas à divisão interna no PS, os jornalistas recorrem por vezes à expressão «disputa pela liderança» dos socialistas.

Gostaria de saber se esta forma está correta e, em caso afirmativo, se é uma forma mais acertada do que «disputa da liderança» do PS.

Resposta:

Tendo em conta que disputa é um derivado regressivo de disputar (é a sua nominalização) e que este verbo é transitivo e se usa sem preposição («eles disputam a liderança»), o referido substantivo deverá em princípio associar-se ao seu complemento por meio de de, que é a preposição geralmente usada neste tipo de nominalizações: «alguém disputa a liderança»/«a disputa da liderança».

No entanto, entre substantivos que correspondem também a verbos transitivos, há alguns – por exemplo, amor/amar – que permitem que o complemento que exprime o objeto da ação assim nominalizada seja introduzido pela preposição por: «o amor das/pelas crianças». Sendo assim, o uso da preposição por poderá ser relevante em expressões relativas quer ao agente quer ao paciente da ação nominalizada: é o caso de  «a disputa deles pela liderança», parafraseável por «a disputa deles por causa da liderança», mas que não permite a alternativa *«a disputa deles da liderança» (mas são corretos: «a disputa da liderança entre eles» e «a disputa da liderança com ele»). De notar ainda que a regência construída com por está registada no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo: «Na disputa do/pelo poder não há regras.»