Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É correcto dizer: «A batalha está sendo travada», como que dizendo «a batalha está em andamento», ou «a peleja está sendo pelejada» (inglês, «The battle is being held»)?

Mais: se o verbo travar vem do nome trave, como se explica que travar signifique, também, «começar, dar início a»; e «travar de» signifique «agarrar, lançar mão de»? Que travar signfique «fazer reduzir o movimento» é-me compreensível a partir do étimo da palavra; porém, naqueles dois casos, não vejo relação alguma entre o étimo do verbo e o significado que ao verbo é dado. Há aí alguém que possa esclarecer isto?

Muito grato.

Markus Dienel

Resposta:

Está totalmente correto o uso apresentado na pergunta.

Travar, que significa fundamentalmente «segurar com força», «prender» e «refrear, usa-se também no sentido de «cruzar» ou «entrecruzar» (também «empunhar», segundo o Dicionário Houaiss: «travar do punhal»), no que parece ser uma extensão semântica de «dificultar ou impedir os movimentos a»: «travar espadas», «os floretes travavam-se nervosamente» (idem). Por transferência de sentido, a expressão terá abrangido a própria situação em que se usam armas: «travar uma batalha», «travar luta».

Refira-se que este uso de travar encontra paralelo no verbo espanhol trabar, que tem formação equivalente à de travar, como derivado de traba (em português, trave), do latim trabs, bis, «trave, viga», segundo Joan Coromines e José Antonio Pascual, Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, edição em CD-ROM (ver também Dicionário Houaiss, s. v. trave). De acordo com estes autores catalães, trabar tinha como sentido fundamental o de «atrapalhar, reter ou segurar com trave», e daqui emergiram as aceções de «lançar-se sobre alguém para o repreender», «repreender, criticar», «lutar, pelejar».

Pergunta:

Faz sentido que na mesma oração surjam um complemento direto e um oblíquo? Se sim, quais os verbos que podem pedir as duas funções sintáticas simultaneamente. São os transitivos diretos/indiretos?

Obrigada e continuação do excelente trabalho.

Resposta:

Há efetivamente verbos que selecionam dois argumentos que se realizam como complemento direto e complemento oblíquo:

(1) Pus a mala [complemento direto] no porta-bagagens [complemento oblíquo]

Como pôr, identificam-se os seguintes verbos, de acordo com a Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 1197) – a lista não é exaustiva:

acusar (alguém de alguma coisa)
afastar (alguém de alguém/alguma coisa)
colocar (alguém em alguma coisa)
confundir (alguém com alguém/alguma coisa)
impedir (alguém de alguma coisa)
obrigar (alguém a alguma coisa)
proibir (alguém de alguma coisa)

No Dicionário Terminológico, que, em Portugal, se destina a apoiar o ensino da gramática na escolaridade básica e secundária, estes verbos são chamados transitivos diretos e indiretos tal como os que se usam com complemento direto e indireto (por exemplo, dar).

Pergunta:

O verbo pensar seguido de um infinitivo é regido pela proposição em? Exemplo: «O advogado pensou em recompensar o pobre.»

Resposta:

Pode usar preposição ou não, em função do significado:

(1) «O advogado pensou em recompensar o pobre.» = «O advogado considerou a possibilidade de recompensar o pobre.»

(2) «O advogado pensou recompensar o pobre.» = «O advogado julgou/planeou recompensar o pobre.»

Pergunta:

Em português é comum o uso do futuro de conjuntivo em orações de relativo. No entanto, tenho reparado no facto de haver também orações de relativo com presente de conjuntivo. Esta construção, normal em castelhano, é correta em português? Por exemplo, os pares de orações que se seguem estão todos corretos? Há alguma diferença de significado entre elas?

«Quem estudar hoje, não chumba.»/«Quem estude hoje, não chumba.»

«Os carros que estiverem na rua podem ser revogados.»/«Os carros que estejam na rua podem ser revogados.»

«Irei buscar-te onde estiveres.»/«Irei buscar-te onde estejas.»

Por último, esta frase de Almeida Garrett – «E quando venha a morte, será morrer por ti» – poderia ser «E quando vier a morte, será morrer por ti»?

Muito obrigado.

Resposta:

É possível usar o presente do conjuntivo nas orações subordinadas adjetivas relativas e nas adverbiais temporais, mas o valor semântico associado é um pouco diferente do associado ao futuro do conjuntivo.

Assim:

1. «Quem estude hoje, não chumba

A frase 1 tem mais valor presente ou genérico do que propriamente futuro.

2. «Os carros que estejam na rua podem ser rebocados.»

3. «Irei buscar-te onde estejas.»

O valor de presente fica salientado em 2 e 3.

Assinale-se que se trata de ocorrências especiais do presente do conjuntivo, como, aliás, aponta Paul Teyssier, quando se refere a esta possibilidade no Manual de Língua Portuguesa (Coimbra Editora, 1989, p. 284):

«As subordinadas [...] [temporais e relativas] podem admitir igualmente o presente do conjuntivo, p. ex.:

Eu vou para Coimbra logo que esteja bom. [...]

Podia ter-se dito igualmente "logo que estiver bom". Se alguma diferença de sentido existe entre os dois tempos, é a seguinte:

– O conj. pres. exprime uma eventualidade pura e simples.

– O conj. futuro exprime uma eventualidade nitidamente situada no futuro.

Na prática, o futuro do conjuntivo é muito mais frequente que o presente em enunciados deste tipo.»

Quanto ao uso que se atesta em Garrett, é preciso ter em conta que se trata de um autor da primeira metade do século XIX, o que pode significar que o uso do futuro do conjuntivo não seria tão sistemático ...

Pergunta:

«(…) Nenhum critério densificador do significado gradativo de tal diminuição quantitativa de dotação e da sua relação causal com o início do procedimento de requalificação no conceito e específico órgão ou serviço resulta da previsão legal, o que abre caminho evidente à imotivação. (…)», acórdão do Tribunal Constitucional sobre rubricas do Orçamento do Estado.

Tendo consultado vários dicionários, sem esquecer o incontornável Morais, não consegui encontrar o vocábulo imotivação. O mais próximo que se me deparou foi:

«Imotivo: Diz-se da germinação, quando se efectua sem deslocação do episperma»,

e ainda mais confuso fiquei, porque afinal o Morais remete-me para o domínio das hortaliças.

Grato pela ajuda que me possam dar para eu tentar compreender o vocábulo em causa.

Resposta:

O Dicionário Houaiss regista imotivado nas seguintes aceções: «1. que não tem motivo; injustificado, gratuito. Ex.: um crime i. 2. Rubrica: linguística. Sem relação lógica ou analógica entre a forma e o significado (diz-se de signo linguístico); desmotivado, arbitrário.»

Este adjetivo imotivado tem origem num particípio passado que pressupõe um verbo imotivar, cujo radical permite a formação do substantivo imotivação, interpretável como «falta de justificação». Este substantivo não parece desconhecido da lexicografia brasileira, uma vez que se encontra registado no dicionário Aulete Eletrónico.

Observe-se ainda que, na linguística brasileira, ocorre o uso de motivado, imotivado e imotivação no contexto da discussão da arbitrariedade do signo linguístico:

«[...] nem tudo numa língua é absolutamente arbitrário ou imotivado. Com efeito, uma parte dos signos é dotada de uma arbitrariedade relativizada em graus, de tal sorte, que seu significante venha a ser escolhido devido a uma motivação bem definida. Assim é correto afirmar que as palavras vinte e dezenove são imotivadas, mas há entre elas graus distintos de imotivação [...]», Ricardo Cavaliere, Pontos Essenciais em Fonética e Fonologia (secção 122 da edição eletrónica).