Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da palavra chasquiçava inscrita no livro de Miguel Torga Os Bichos, no conto Nero, na seguinte frase:

«... Enquanto a dona mondava o trigo, chasquiçava batatas ou enxofrava a vinha...»

Agradeço a atenção.

Resposta:

No contexto apresentado, chasquiçava significa «sachava1 batatas, para eliminar erva».

O verbo chasquiçar é um regionalismo de Trás-os-Montes que é usado nas eguintes aceções:

a) «afiar um pau na extremidade, para, por ex., o espetar no solo», «chuçar», «atiçar»;

b) «sachar as batatas, para eliminar a erva».

Esta informação encontra-se em Língua Charra – Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro (Lisboa, Âncora Editora, 2013), de A. M. Pires Cabral, autor que, ainda a respeito do mesmo verbo, regista uma abonação que é justamente a frase de Miguel Torga citada pelo consulente.

1 Sachar significa «lavrar, escavar ou mondar (a terra) com o sacho» (Dicionário Houaiss). Um sacho (do latim SARCŬlU-, «enxada, instrumento de cavar a terra»; cf. idem) é uma «pequena enxada que dispõe de uma peça pontiaguda ou bifurcada na parte superior do olho, us. para mondar e escavar a terra» (idem). Sobre o uso deste termo em Portugal e na Galiza, consultar o Tesouro do Léxico Patrimonial Galego e Portugués, recurso disponível nas páginas do Instituto da Língua Galega.

Pergunta:

Minha dúvida é acerca da transitividade dos seguintes verbos: pesquisar, consultar (consultor/consultoria) e assessorar (assessor/assessoria). Por exemplo, em frases como estas:

1. O rapaz pesquisou sobre direito constitucional.

A preposição sobre introduz objeto indireto, ou adjunto adverbial? É correto usar a preposição sobre?

E agora os verbos consultar e assessorar, quando utilizados com relação à profissão de assessor e consultor, em frases como:

2. A profissional consultou a empresa X sobre as suas finanças.

3. A profissional assessorou a empresa X sobre as suas finanças.

Nessas frases 2 e 3, a preposição sobre introduz um objeto indireto, ou um adjunto adverbial?

Muito obrigado.

Resposta:

Em todos os casos, está correto o uso da preposição sobre, que ocorre a introduzir um complemento preposicionado (complemento indireto na terminologia usada no Brasil; complemento oblíquo na terminologia empregada em Portugal).

Assim:

– «pesquisar alguma coisa» ou «sobre alguma coisa» – cf. Francisco da Silva Borba, Dicionário Gramatical de Verbos, Editora UNESP, 1991: «Ocorre também com o complemento da forma sobre + nome»;

– «consultar alguém a respeito de/sobre alguma coisa» – cf. Dicionário de Verbos Portugueses, Lisboa, Texto Editora, 2007: «O rapaz, curioso, consultou um linguista sobre a etimologia de uma palavra»;

– «assessorar alguém em/sobre alguma coisa» – cf. Celso Pedro Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal, Editora Ática, 2003; mas observe-se, a respeito de assessorar, que, embora este verbo se empregue com a preposição em («assessora-o em matéria económica») e tendo em conta que o substantivo correspondente assessoria pode selecionar a preposição sobre em lugar da preposição em, é legítimo aceitar o complemento verbal também introduzido por sobre.

Pergunta:

Existem muitas normas sobre como escrever as unidades por extenso e o confuso plural que o SI tanto gosta de pôr apenas a partir do dois, mas, quanto à pronúncia de certas unidades, nada têm. A unidade coulomb, C, unidade de carga elétrica, provém do nome do físico francês Charles Coulomb, que se pronuncia [kulõ]. Mas a unidade é por si uma palavra traduzível portuguesa. Em disciplinas como o Eletromagnetismo, as pessoas pronunciam o nome tal e qual como em francês, mas não se deveria ler «à portuguesa» como [kulõb]?

Outra regra sobre os plurais é que, nas unidades em homenagem a pessoas, o plural deve ser construído de acordo com as regras da língua de origem do nome. Neste caso, ler-se-ia «dois [kulõ]», «dois [kulõbs]» ou «dois [kulõʃ]»?

Resposta:

Normalmente, a adaptação de um nome estrangeiro é mais feita em função de como soa do que pela grafia. Por essa razão, formas como proustiano, «relativo a Proust», se leem como "prustiano", e não "prôstiano" nem "proustioano", ou seja, com o dígrafo ou de origem francesa pronunciado como em francês – [u].

Contudo, no caso de coulomb, a verdade é que a pronúncia portuguesa atestada é [kulõb], de acordo com a transcrição do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. Ainda segundo a mesma fonte, o plural é coulombs, que soará como "culombes" e pode ter a transcrição fonética [kulõbɨʃ].

Em suma, não conhecemos normas rígidas para a adaptação de nomes de unidades com origem em nomes próprios estrangeiros. A adaptação dessas formas ao português pode ser maior ou menor – mas quando se trata do plural segue-se a morfologia portuguesa com a respetiva fonética, ou seja, com o morfema de plural pronunciado [ʃ].

Pergunta:

Gostava de insistir numa questão já aqui colocada há uns anos: como dizer «pessoa que anda à boleia»?

Viajar à boleia é um fenómeno antiquíssimo em Portugal, tal como a palavra. Haverá alguma expressão antiga, algum regionalismo para isto? Na maioria das línguas a palavra existia ou foi criada e generalizada:

caroneiro em português brasileiro, autostoppeur em francês, hitchhiker em inglês, tramper em alemão...

mochileiro, a adaptação no Brasil para backpacker, não tem de todo o mesmo significado.

boleeiro será o que dá boleia, historicamente o cocheiro.

boleiante tem sido usado nos últimos anos pela Internet.

Estou à procura da palavra que passarei a usar e, sem supor que cabe aos linguistas a criação de palavras, aceitaria agradecido eventuais sugestões vossas, por menor rigor académico que esse desafio envolva.

Obrigado e um abraço!

Resposta:

Nas fontes de que dispomos não se regista a palavra "boleiante", nem se atribui a "boleeiro" a aceção de «(pessoa) que anda à boleia».1 Trata-se, portanto, de um neologismo – discutível, certamente, porque pressupõe bolear numa aceção («andar à boleia») que também não se encontra nos dicionários consultados nem parece estar enraizada no uso corrente. No entanto, mesmo aceitando que bolear é a forma pressuposta, a palavra deveria ter a forma "boleante", de acordo com o modelo facultado pela correspondência entre passear (um verbo terminado em -ear como bolear) e passeante. A menos que, à revelia de todos os critérios de boa formação de palavras, crie o verbo "boleiar" (como parece ter já criado), muito embora a consulta de qualquer dicionário mostre a raridade de verbos com essa terminação no infinitivo (o Houaiss regista somente enseiar, «formar seio em», e veiar, «tornar visíveis veias ou quaisquer vasos sanguíneos de» e «formar veios», que parecem limitar-se ao português do Brasil). Em suma, tendo apenas em conta a palavra boleia, é difícil identificar uma forma que a priori, isto é, antes de ter efetivo uso, se apresente como correta. Talvez o uso de "boleiar" e "boleiante" que o consulente possa eventualmente fazer nos seus textos alcance popularidade, apesar de poder indignar gramáticos mais ciosos das regras do português; seria uma situação curiosa, porque teríamos assim um neologismo com origem bem identificada.

Poderíamos sugerir-lhe outras denominações, mas, neste momento, só nos ocorrem perífrases, sempre palavrosas: «viajante à boleia». A não ser que se proponha a criação do composto «va...

Pergunta:

Gostaria de saber se o núcleo do sujeito pode ser um aposto.

Por exemplo, qual o núcleo do sujeito nesta frase: «Bebida, fumo, jogo, tudo o destruía»? Sei que «tudo» é aposto resumitivo e faz parte do sujeito. Porém, é ele o núcleo, ou é «bebida, fumo, jogo»?

E também nesta frase – «O advogado José Bastos chega hoje» – não sei se o núcleo é «advogado» ou o aposto especificativo «José Bastos».

Muito obrigada.

Resposta:

Não é inequívoca a identificação do aposto ou do núcleo no exemplo enviado. Há autores que considerariam que «bebida, fumo, jogo» é o aposto, como se pode inferir da definição de «aposto enumerativo» por Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Nova Fronteira/Editora Lucerna, 2009, p. 457):

«Chama-se "aposto" a um substantivo ou expressão equivalente que modifica um núcleo nominal (ou pronominal ou palavra de natureza substantiva como "amanhã", "hoje", etc.), também conhecido pela denominação "fundamental" [...].

[o aposto explicativo] enumerativo [ocorre]*, quando a explicação consiste em desdobrar o fundamental representado por um dos pronomes (ou locução) "tudo", "nada", "ninguém", "cada um", "um e outro", etc., ou por substantivo:

Tudo – alegrias, tristezas, preocupações ficava estampado logo no seu rosto. [...]

Às vezes esse tipo de aposto precede o fundamental:**

A matemática, a história, a língua portuguesa, nada tinha segredos para ele.

Em todos estes exemplos, o fundamental ("tudo" [...], "nada") funciona como sujeito das orações e, por isso, se estabelece a concordância entre ele e o verbo.»

Ou seja, à luz desta perspetiva, «Bebida, fumo, jogo» é o aposto, e «tudo», o núcleo do sujeito na frase «bebida, fumo, jogo, tudo o destruía».

Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, p. 507) parecem propor uma análise diferente, muito embora fora da discussão do aposto. Consideram que, em sequências como as da frase em análise, pronomes indefinidos como tudo ou nada resumem um sujeito composto, o q...