Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostei muito do site. Conheci-o há pouco tempo e passarei a freqüentá-lo mais vezes.

Minha dúvida é sobre o Formulário Ortográfico de 1911.

Quais eram as regras ortográficas anteriores a esse formulário?

Resposta:

Antes do Formulário Ortográfico de 1911, que marcou a primeira reforma profunda da ortografia da língua portuguesa, não havia propriamente um corpo de regras que fosse adotado por todos. Seguia-se uma tradição não sistematizada, fortemente etimológica (daí o ph, o th, o ch com valor de [k]) e até pseudoetimológica. Verificavam-se, por isso, grandes divergências entre formas de palavras, justamente porque a ortografia não estava totalmente fixada num documento acessível ao público. Deve, contudo, registar-se que, no século XIX, se procurou reduzir ao mínimo a arbitrariedade desta escrita etimológica com a publicação, em 1866, de um vocabulário ortográfico, o primeiro da história ortográfica do português (cf. Artur Anselmo, Vocabulários da Língua Portuguesa Editados em Portugal (1866-1970), comunicação apresentada à Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa em 9/07/2009). Sobre este assunto, aconselho também a leitura de uma obra publicada em 1987, por alturas do reacender do debate sobre a ortografia: Ivo Castro e outros, A Demanda da Ortografia Portuguesa, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1987.

N.E. – Desde cedo, os jornais da época noticiaram e comentaram esta primeira iniciativa de normalização e simplificação da escrita da língua portuguesa. Por aí pode acompanhar-se a preparação de impressores e tipógrafos para receber a reforma em vigor desde 1911; por aí perpassa o terçar de armas a favor d...

Pergunta:

«Era um jogo arriscado e perigoso.»

Há redundância nessa frase?

Obrigado.

Resposta:

Não me parece haver uma resposta categórica à pergunta, porque muito depende do partido estilístico que se pretenda tirar da coordenação de sinónimos e da redundância daí resultante.

A expressão contém efetivamente certa redundância, por envolver dois sinónimos, perigoso e arriscado, facto que poderá constituir razão suficiente para a rejeitar. Observe-se, porém, que os substantivos perigo e risco, pressupostos mais ou menos diretamente pela formação destes adjetivos, estabelecem entre si certo contraste, como propõe o Dicionário dos Sinónimos Poético e de Epítetos da Língua Portuguesa, de J. I. Roquete e José da Fonseca:

«O perigo refere-se a um mal mais imediato que o risco. Aquele aplica-se sempre à contingência de grande momento; este costuma aplicar-se a coisa de menor consequência. Está em perigo de perder a vida o soldado que se acha em frente de uma bateria inimiga. Corre risco de cair doente o que passa sem precaução do calor ao frio. O primeiro refere-se a um mal mais iminente e mais próximo que o segundo. – Quem joga na lotaria corre risco de perder seu dinheiro; e não se diria está em perigo, etc., o que suporia um mal muito maior que o que corresponde àquela ideia.

Um valente que despreza os riscos costuma arrepender-se de sua temeridade à vista do perigo

Nesta perspetiva, é, pois, legítimo considerar que, em «um jogo arriscado e perigoso», «perigoso» não é simples reiteração do significado de «arriscado» e, portanto, a expressão não é redundante ou pleonástica. Além disso, é frequente uma sequência constituída por dois sinónimos coordenados servir para enfatizar uma ideia, ch...

Pergunta:

Tenho um dúvida em relação à fonética de palavras como ponte e Barcelona. Será "pônte" ou "pónte"? "Barcelôna" ou "Barcelóna"?

Resposta:

No português de Portugal, as sequências gráficas on- (onda, ponte) e om- (bomba), que ocorrem antes de consoante, correspondem sempre a um o nasal fechado (uma vogal nasal média arredondada, de acordo com o Dicionário Terminológico). No entanto, sabe-se que nos dialetos portugueses setentrionais essas vogais podem ser pronunciadas com o timbre mais aberto e até como vogais orais seguidas de um segmento consonântico, o que permite que ponte possa soar como "pónte", ou com o nasal aberto, ou com o oral aberto seguido de segmento consonântico nasal.1 Quanto a Barcelona, também o padrão é com o oral fechado, mas não é de excluir que, dialetalmente, tal vogal tenha o timbre mais aberto.

1 Conforme observam Maria João Freitas, Celeste Rodrigues, Teresa Costa e Adelina Castelo, em Os Sons Que Estão dentro das Palavras (Lisboa, Edições Colibri/Associação de Professores de Português, 2012, págs. 164/165), «[a]lgumas vogais nasais dos dialetos setentrionais apresentam-se mais abertas do que as correspondentes do dialeto-padrão. Isso não acontece com as vogais altas [ĩ] e [ũ], que têm um grau de fechamento estável na língua. Porém a vogal [ɐ̃] do padrão, embora exista nos dialetos setentrionais, nesses dialetos costuma ocorrer em variação com duas outras formas: i) como vogal baixa recuada nasal [ã], ii) como vogal oral seguida por uma coda (consonântica) nasal: antiga [an.tí.gɐ], campo [kám.pu], canga [káŋ.gɐ], ou seja, com uma coda com o ponto de articulação da consoante segui...

Pergunta:

«Lamentavelmente somente depois da sociedade comprovar a necessidade de mudanças estruturais e cobrar mudanças, é que as transformações começaram a acontecer.»

Está correto o uso da vírgula no período acima?

Obrigado.

Resposta:

Aconselho a seguinte pontuação (com a não contração da preposição de com o artigo a, como é obrigatório quando estas palavras são antecedidas de um verbo no infinitivo):

«Lamentavelmente, somente depois de a sociedade comprovar a necessidade de mudanças estruturais e cobrar mudanças é que as transformações começaram a acontecer.»

A expressão «é que» não costuma ser antecedida de vírgula, tal como não tem vírgula a construção enfática equivalente:

«Lamentavelmente, foi somente depois de a sociedade comprovar a necessidade de mudanças estruturais e cobrar mudanças que as transformações começaram a acontecer.»

Pergunta:

Em primeiro lugar, meus cumprimentos pelo excelente trabalho! Sou professor de Física, e também na minha área prezo pelo bom uso do vernáculo.

Indago hoje sobre uma expressão recorrente em problemas de Física e de Matemática. Suponha que queiramos nos referir a uma superfície inclinada, que forme com a horizontal um ângulo de, por exemplo, 30 graus. Estaria correto dizer que ela é «inclinada de 30 graus com a horizontal»?

Apesar de prevalecente a construção em nossos livros ditos didáticos, julgo-a imprópria: primeiro, porque acredito que «inclinado» rege complemento direto («inclinado 30 graus», e não «de 30 graus»); segundo, porque entendo que uma coisa pode «formar um ângulo com outra», mas nunca «ser inclinada com outra». Correto, a meu ver, seria dizer que a superfície é «inclinada 30 graus da (i.e., a partir da) horizontal».

Gostaria de saber a opinião de vocês a respeito do tema.

Muito obrigado!

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as palavras de apreço do consulente.

A expressão «inclinado de 30 graus» evoca outras construções controversas, como «aumentar em» e «aumentar de».

Recomenda-se por isso o uso não preposicionado do complemento que marca a medida, conforme o exemplo:

1 – «...inclinada 30 graus em relação à horizontal.»

Outro exemplo:

2 – «O eixo do teu balão está agora inclinado 23 e 30 graus/minutos em relação à vertical.»

Note-se, de qualquer modo, que, em páginas do Brasil, a construção «inclinado/a de... com...» é muito frequente, o que pode sugerir que a expressão já está consagrada pelo uso no âmbito da norma-padrão brasileira. Em Portugal – e provavelmente noutros países de língua oficial portuguesa, como Cabo Verde, Angola ou Moçambique –, parece preferir-se a construção indicada em 1 e 2.