Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «Ele hospedou-o em sua casa», a expressão «em sua casa» é um complemento oblíquo, ou um modificador?

Antecipadamente grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Os dicionários gerais consultados (Dicionário Houaiss e Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses da Texto Editora) dão a indicação de o verbo hospedar poder ser transitivo direto («alguém/alguma coisa hospeda alguém/alguma coisa», no sentido genérico de «receber»), sem explicitarem a eventualidade de o verbo ter ainda um complemento oblíquo. Nesta perspetiva, na frase «ele hospedou-o em sua casa», o constituinte «em sua casa» é um modificador do grupo verbal. Quando o verbo é usado com o pronome -se (hospedar-se), os dicionários consultados classificam-no como verbo pronominal, embora possam ser omissos quer a respeito da natureza do pronome -se (reflexo, ou inerente?) quer quanto ao estatuto da expressão locativa associada a este uso; refira-se que no Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Lisboa, Texto Editora, 2007), regista-se este uso pronominal, sem complementos. Cabe observar, no entanto, que uma frase como «ele hospedou-se» se afigura incompleta, pelo que, considerando, a título de exemplo, a sequência «ele hospedou-se em sua casa», deve ser atribuída a função de complemento oblíquo à expressão «em sua casa». Relativamente à natureza do pronome -se em hospedar-se, parece-me legítimo interpretá-lo como pronome inerente, sem função sintática específica.

A assimetria entre «hospedar alguém» e «hospedar-se em...» é também descrita por Francisco Fernandes, no Dicionário de Verbos e Regimes (6.ª edição, 1947): «Transitivo – Receber por hóspede; dar hospedagem a: "On...

Pergunta:

Teriam a amabilidade de me desvelar o sentido da expressão «cavar pés-de-burro»?

Grato pela atenção dispensada.

Resposta:

A expressão «cavar pés-de-burro» significa o mesmo que «cavar batatas», usada nas aceções de «não ter onde ganhar a vida» e «mandar alguém embora» (Guilherme Augusto Simões, Dicionário de Expressões Populares Portuguesas). «Pé-de-burro» é, em botânica, uma «planta monocotiledónea, bolbosa, da família das Iridáceas, espontânea no Centro e no Sul de Portugal» (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora).

Pergunta:

Venho por meio deste tentar sanar uma dúvida quanto à melhor forma de grafar as variantes sassânida e árabe do precursor do latim moderno, o chaturanga indiano. Eles são respectivamente o chatrang e o shatranj. Segundo as parcas fontes que encontrei, nenhuma delas em português (Hage, Louis. Encyclopédie maronite, Volume 1: Universidade Santo Espírito, 1992 p. 165; Ivkov, Borislav. Alfil Malo: Editorial Paidotribo, 2002 p. 207), o primeiro poderia ser grafado "chatrange", embora me tenham sinalizado recentemente que talvez no português desse algo como "chatrangue" ou coisa parecida. Do segundo, eu achei uma fonte italiana (Pacioli, Luca. Gli scacchi di Luca Pacioli: evoluzione rinascimentale di un gioco matematico: Aboca museum, 2007 p. 133), segundo a qual apenas se usa shatranji, embora em itálico, o que ainda leva a mais dúvidas que o primeiro, ainda mais quando consideramos que no português, via de regra, sh fica ch e/ou x (ex.: paxá).

Resposta:

Não tenho conhecimento de as palavras em causa terem chegado a ser adaptadas à fonética, à morfologia e à ortografia do português. Como se trata de palavras de uso raro, podemos sempre manter os termos usados internacionalmente, desde que os assinalemos em itálico ou entre aspas: shantranj e chantrang. No entanto, arrisco-me a propor que a forma árabe corresponda a xatranje, e a persa, a chatrangue, considerando os seguintes critérios:

– Em relação a xatranjeshantranj na transliteração para inglês, que se tornou também a forma internacional em alfabeto latino, e, em árabe شطرنج –, começa esta palavra por uma consoante fricativa pré-palatal surda, segmento que o árabe representa pela letra ش (shim ou xime). Geralmente, nos arabismos do português, tal letra corresponde a x1, e não a ch, já desde a Idade Média. É, portanto, mais coerente com a tradição portuguesa escrever xatranje, com x, do que adotar uma forma com ch, ou seja, "chatranj". Na restante sequência de letras em português, é ainda de assinalar o uso de j, e não de g, antes de e: apesar de, em muitos arabismos, a consoante fricativa pré-palatal sonora que se representa pela letra árabe ج (jime) aparecer depois grafada com g antes de e ou i (algeroz, algibeira), não se afigura ilegítima a transliteração portuguesa com j, de modo a assinalar que tal segmento não tem relação com a pré-palatal que evoluiu do G latino (por exemplo, gente ou agir).

Pergunta:

É correto escrever-se «o Samouco» (localidade)? Exemplo: «Vivo no Samouco»? «Vivo em Samouco»? Ou ambas as formas são corretas?

Resposta:

O uso tradicional do topónimo Samouco inclui o artigo definido («o Samouco») e, portanto, deve dizer-se «vivo no Samouco». Este topónimo parece ter origem no substantivo comum samouco (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa), designação de uma planta (Myrica faya) ou de «crosta formada pela pedra depois de separar-se da pedreira» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Pode dizer-se «entregar um discurso» em vez de «fazer um discurso»?

Penso que «entregar um discurso» é a tradução directa de «deliver a speech» e que estará incorrecta, mas agradecia o vosso comentário.

Resposta:

Em português, a expressão tradicional é efetivamente «fazer um discurso». «Entregar um discurso» constitui, como bem observa a consulente, um anglicismo dispensável – um decalque de «to deliver a speech», ou seja, «discursar», «fazer um discurso» – e até forçado, porque o verbo entregar não costuma fazer referência à atividade linguística.