Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Ela explicou-lhe, ao ouvido:

— Já, sim, filha, que tenho estado a abarrotar, comi umas bajes e tenho estado!... E aquele homem, aquele gelo! O Sr. Ernesto vem para os meus sítios, hem?

— Como um fuso, minha senhora!»

Eça de Queirós, O Primo Basílio (1878)

Junto envio breve citação da obra de Eça de Queirós que contem o vocábulo "baje". Após consultar vários dicionários da língua portuguesa, todos são omissos. Poderá ter acontecido algum erro tipográfico! Assim, venho por este meio solicitar a vossa imprescindível ajuda.

Obrigado.

Resposta:

A forma-padrão geralmente dicionarizada é vagem, no sentido de «feijão-verde» (cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa). Contudo, alguns dos dicionários consultados registam também bagem, vage (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) e bage (idem; também como topónimo na Infopédia), todas variantes claramente populares, em especial as duas últimas, porque apresentam a redução de -gem a -ge, como acontece em muitos dialetos do português: "virge" (em vez de virgem), "image" (em vez de imagem), "portage" (em vez de portagem). Note-se que, na ortografia anterior à reforma ortográfica de 1911, se podia escrever "baje", com j. De todos os modos, o que importa frisar é que Eça de Queirós parece ter pretendido empregar "baje" – explorando o preconceito, é certo – no intuito de salientar as origens populares, a falta de refinamento e a pouca cultura da personagem de D. Felicidade, assim criando um efeito de cómico nessa cena de O Primo Basílio.

OBS. – Mesmo no contexto da normativização da língua portuguesa, houve quem registasse as variantes populares. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940 regista vage(m) com a variante bage(m), assim indicando a possibilidade de uso de vage e bage. Rebelo Gonçalves, no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), regista todas estas variantes e junta-lhes a forma vaja.

Pergunta:

Que somente e unicamente signifiquem isso mesmo, é evidente. Mas como é que apenas, que é constituído por «a+pena-s», veio a significar «somente»?

Resposta:

Apenas tem origem na locução «a penas», ou seja, «a custo». Verificou-se uma evolução semântica: da noção de dificuldade, associada a uma situação, passou-se a encarar como excecional aquilo que escapa à dificuldade.

Pergunta:

Deve-se dizer «ficou atónito perante a sua recusa em jantar», ou «ficou atónito perante a sua recusa de jantar»?

Resposta:

Os dois usos estão corretos, e é também possível dizer ou escrever «a sua recusa a jantar». Ou seja, o substantivo pode ser seguido das preposições em, de e a antes de substantivo ou de verbo no infinitivo.

O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, apresenta abonações do uso do substantivo recusa com as preposições em e de:

1 – «A recusa em apresentar desculpas valeu-lhe a perda de um amigo.»

2 – «O cliente pode fazer a recusa de qualquer produto danificado.»

O Dicionário UNESP do Português Contemporâneo também abona o uso de a:

2 – «Não esperava a recusa ao seu pedido de casamento.»

Ver ainda Francisco Fernandes, Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, onde se confirmam estas regências.

Pergunta:

Se o verbo sair vem do latim salire, donde vem que se escrevesse sahir, com h, e não com l, salir?

Grato.

Resposta:

O português e o galego perderam o -L- intervocálico do latim: TELA- > tea (galego), teia (português). Assim se explica que de *SALIRE tenha evoluído sair, sem l. Quanto à ortografia, até ao Formulário Ortográfico de 1911, usava-se o h para indicar um hiato, ou seja, para indicar uma sequência de vogais que não formavam ditongo. Daí sahir, com h, de modo a assinalar que a pronúncia era "sa-ir", sem ditongo. Mais tarde, suprimiu-se esse h, porque todas as palavras que exibem a sequência "ai" seguida de "r" final são pronunciadas com hiato (cf. cair, trair, esvair).

Pergunta:

Indago aos sapientíssimos consultores do Ciberdúvidas se a expressão «prazer dos sentidos» é sinônima da expressão «prazer sexual».

Muito obrigado.

Resposta:

A expressão «prazer dos sentidos» não é propriamente sinónima de «prazer sexual», mas é suscetível de ser utilizada como eufemismo para evitar a referência direta à vida sexual, assunto que até há algumas décadas e mesmo ainda hoje era ou é mais ou menos censurado. Mesmo assim, diga-se que a expressão «prazer dos sentidos» pode abranger outras experiências de prazer como as que proporcionam o gosto, o olfato ou a visão. Assinale-se também que o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, regista uma expressão bastante aproximada – «entregar-se a prazeres» –, que parece ter forte conotação sexual, embora não possa ser entendida assim exclusivamente: «vivia uma vida de dissipação, entregando-se a prazeres que eram por vezes infames (abandonando-se a, deixando-se arrastar por)». Ou seja, tendo em conta que, historicamente, a sexualidade era uma esfera de referência sobre a qual recaíam numerosas interdições e tabus, havia (e continua a haver) toda uma forma oblíqua de lhe fazer alusão, sem a mencionar diretamente. Esta estratégia discursiva faz com que tal conotação acabe, por vezes, associada a outras significações que tornam difusa a referência de caráter sexual.