Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Poder-se-á dizer «discernir se», como no exemplo «devemos discernir se o conteúdo é "este" ou "aquele"»?

Resposta:

O verbo discernir pode ser seguido de uma oração introduzida por que ou se:

1 – «Pode discernir [...] que os animais apresentam diferentes graus de complexidade estrutural» (Dicionário de Usos do Português do Brasil, Editora Ática, 2002).

2 – «Ora, na galeria dos Jerónimos, as exposições de números únicos abundam, e perante elas, a seis meses apenas de pauta, o espectador não pode discernir se tais objectos são apenas caprichos de curioso querendo mostrar que cá também se faz, se mais do que isso, tentamens receosos de indústrias criadas sob propósito de pouco a pouco se irem desenvolvendo em escala comercial» (Fialho de Almeida, Os Gatos in Corpus do Português).

Pergunta:

Existe o verbo "estremingar" em português?

Obrigada.

Resposta:

Não encontrei registo de "estremingar" em dicionários portugueses. No entanto, numa consulta de páginas da Internet, observo que no castelhano regional existe um verbo com configuração idêntica, estremingar – atestado no falar de Morgovejo (no nordeste da província de Leão) e em Villacorta (na província de Segóvia). A mesma forma consta também de um dicionário de leonês – um "Palabreru Lleonés", no portal Esllabón Lleonesista. As referidas fontes indicam ainda que se usa a locução «dar estremingones».

Tanto estremingar como «dar estremingones» significa «abanar alguém, sacudir alguma coisa», mas o dicionário da Real Academia Espanhola não o regista, o que sugere que se trata de um verbo pouco ou nada frequente na norma-padrão do espanhol. Seja como for, não posso confirmar que este aparente leonesismo/castelhanismo exista dialetalmente em português – já que na norma-padrão não se atesta. Note-se que, em galego, língua muito próxima do português e que costuma dar pistas sobre os regionalismos da nossa língua, não se atesta o uso de estremingar, nem sequer de uma expressão hipotética como «dar estremingóns». A resposta fica, portanto, aberta à colaboração dos consulentes que queiram facultar pistas sobre a eventual ocorrência de estremingar nos falares regionais portugueses.

 

Nota (9/04/2016): Agradeço à consulente Isabel Maia a achega que nos enviou: «Nasci e cresci...

Pergunta:

A expressão «inspirar às golfadas» existe? Os dicionários definem «golfada» como um jorro de vómito ou de líquido, mas julgo ter ouvido a expressão «inspirar às golfadas» no sentido de respirar sofregamente, em aflição. A expressão é correcta? E, se não é, há alguma que seja do nosso uso?

Muito obrigado.

Resposta:

A expressão em apreço está correta, porque é possível associar golfada não só a matéria líquida mas também ao ar que se respira.

Relaciona-se geralmente golfada, que significa «jorro, jato, vómito», com a ideia de líquido, e por isso ocorre a palavra frequentemente com outras como sangue, por exemplo, na expressão «golfada de sangue» ou em «sangue às golfadas» (ver dicionário da Academia das Ciências).

Contudo, a expressão «às golfadas» pode também ser associada à noção de ar, o que permite dizer que «se respira (ar) às golfadas», que «se inspira (ar) às golfadas», além de existir «ar às golfadas» ou de haver «golfadas de ar». Encontram-se exemplos deste uso na literatura:

1 – «Mas, neste naufrágio que agora contemplo na minha imaginação, vejo alguns homens varridos pelas ondas, atirados pela borda fora, amaldiçoando o mar antes de morrerem com os pulmões cheios de água. Avidamente inspiram umas últimas golfadas do ar que agitadamente os mata. O barco tem o leme partido, as velas esfarrapadas, um mastro derrubado» (Maria Isabel Barreno, O Senhor das Ilhas, 1994, in Corpus do Português).

2 – «Leu toda a noite, sentado aos pés da cama, respirando a largas golfadas, com a delícia de quem sai de um cárcere, a atmosfera que o envolvia, feita das emanações de Ideal, exaladas daqueles volumes românticos» (Eça de Queirós, A Capital, idem).

Também no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa há atestação desse uso:

3 – «um projector enorme acendendo-se e apagando-se cont...

Pergunta:

Tenho recebido [algumas mensagens de correio eletrónico] que, após o cumprimento inicial, começam com o verbo no infinitivo. Parece-me incorrecto, mas a colega diz que aprendeu assim na faculdade. Por exemplo:

«Boa tarde.

Dizer que já recebi as fichas de avaliação de todos os elementos do departamento. (...)»

Está correcta esta frase, ou outras como esta? Já tentei pesquisar, mas apenas encontro referência a casos de língua inglesa.

Obrigada.

Resposta:

Trata-se efetivamente de um uso que a norma-padrão não legitima. No caso de «dizer que já recebi as fichas...», não se trata do infinitivo que ocorre em textos instrucionais (por exemplo, «carregar no botão vermelho»), mas, sim, de uma maneira abreviada (elíptica) de dizer o mesmo que «falo/escrevo só para dizer que...», estrutura declarativa em que o infinitivo ocorre como elemento subordinante de uma oração subordinada substantiva completiva («que já recebi as fichas...»). Existe uma construção paralela em espanhol, que nesta língua também não se aceita, como se pode confirmar por um comentário do portal Fundéu.

Pergunta:

Em:

a) Calças de ganga;

b) Bolo de chocolate.

Qual a função sintática de «de ganga» e «de chocolate»? Em ambos os casos estamos perante um complemento do nome?

Grata pela atenção.

Resposta:

Tradicionalmente, trata-se de complementos de matéria, mas, na perspetiva do Dicionário Terminológico (DT), destinado a apoiar em Portugal o estudo da gramática nos ensinos básico e secundário, não fica clara a função destes constituintes. Será preciso consultar uma obra exaustiva, como é o caso da Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1065). Nesta fonte considera-se que casos como os de «de ganga» e «de chocolate» são sintagmas preposicionais classificadores, uma subclasse estrutural que parece ficar a meio caminho entre os complementos do nome* e os modificadores do nome.

* No contexto do ensino não universitário e tendo ainda em atenção o DT, pode afigurar-se prudente focar o estudo do complemento do nome na análise dos nomes deverbais que são geralmente reconhecidos com facilidade por se relacionarem com verbos transitivos, conforme, aliás, o próprio DT exemplifica: «[A construção [do edifício]] parece-me difícil. ([do edifício] é complemento do nome "construção" no grupo nominal [a construção do edifício])»