Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Existe a expressão «atirar pagaias» no sentido de «dar palpites»?

Resposta:

Não foi possível encontrar registo dicionarístico ou outro de tal expressão.

Os dicionários gerais consignam o vocábulo pagaia, como designação de uma «espécie de remo curto, com pá larga, usado em pirogas e canoas» ou de «remo com uma pá (pagaia simples) ou com uma pá de cada lado (pagaia dupla), usado em canoagem desportiva, nomeadamente em caiaques» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Não é, portanto, descabido supor o uso efetivo de «atirar pagaias» como imagem do canoísta que avança sobre águas nem sempre calmas, manejando a pagaia com algum risco, à semelhança de quem dá palpites, ou seja, de quem dá a sua opinião por intuição ou mera ignorância atrevida.

Mesmo assim, convém assinalar que as fontes lexicográficas acolhem também as palavras pangaia e pangaio, que vêm a significar o mesmo que pagaia (cf. Dicionário Houaiss). Pangaio pode ser igualmente a designação de «grande embarcação alterosa, resistente, rápida e de boa estabilidade, com dois mastros de velas bastardas, usada na África oriental e na Índia» (idem*). Esta forma tem ainda um homónimo de origem obscura que significa «jovem que trabalha pouco; preguiçoso, indolente» (idem*) e que parece estar contido na expressão «armado em pangaio», interpretável como «dando-se ares, afetando importância» (cf. A. M. Pires Cabral, Língua Charra. Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, Lisboa, Âncora Editora, 2013, s. v. pangaio)**. Não é, portanto, de excluir que «atirar pagaias» seja uma variante (ou deturpação) de «armar-se em pangaio», idiomatismo equivalente a «dar palpites», expressão que, por sua vez, pode denotar o comportamento da pessoa intrometida ou convencida que dá opiniões, sugestões e pare...

Pergunta:

Gostaria de saber se está correta está frase: «A aula em campo de Pedra Azul foi adiada para o dia 20 de junho.»

Ou seria: «A aula de campo em Pedra Azul...»?

Obrigada!

Resposta:

Se, como na expressão «trabalho de campo», «atividade de recolha de dados para serem posteriormente estudados e analisados», se trata de uma aula que decorre fora da escola, no espaço onde se possa observar um dado fenómeno físico e explorar as condições da sua ocorrência, então a expressão mais adequada será «aula de campo». Trata-se de um termo que já encontra atestado em certas áreas de estudo, conforme atesta a seguinte definição, facultada por uma página da Universidade Estadual do Ceará:

«A aula de campo é um método bastante utilizado em disciplinas que exigem análises empíricas sobre o assunto em estudo. Compreende-se que esse tipo de metodologia possui grande eficácia no processo ensino aprendizagem, permitindo, aos alunos, um contato com aspectos mais amplos referentes aos temas Ecologia de Campo, Fauna, Botânica, Solos, Biogeografia, etc, aspectos estes, que não poderiam ser identificados ou compreendidos apenas com leituras. Desse modo, todas as emoções e sensações surgidas durante a aula de campo em um ambiente natural podem auxiliar na aprendizagem dos conteúdos, à medida que os alunos recorrem a outros aspectos de sua própria condição humana, além da razão, para compreenderem os fenômenos. O desenvolvimento de atividades em espaços com essas características traz a vantagem de possibilitar, ao estudante, a percepção de que fenômenos e processos naturais estão presentes no ambiente como um todo, possibilitando explorar aspectos relacionados com os impactos provocados pela ação humana nos ambientes.»

Refira-se, no entanto, que a expressão «em campo» é legítima. Acha-se, por exemplo, atestada no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa como locução associada a certos verb...

Pergunta:

Gostaria de conhecer a origem da bela expressão «nem por sombras».

Grato desde já pelo serviço sempre impecável.

Resposta:

Entre várias fontes consultadas para elaboração desta resposta, não se achou informação sobre a história factual da locução «nem por sombras», que significa «nunca, de maneira algumas» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).  O mais que aqui se pode dizer – por enquanto – é que terá génese na negação hiperbólica de uma coisa ou de um estado de coisas : «nem por sombras» = «nunca, nem mesmo a sombra disso». Conhece também a variante «nem por sombra», que não parece diferenciar-se semanticamente.

Observe-se que é possível atestar o uso desta locução adverbial, pelo menos, desde meados do século XVIII:

1. «A consciência não me acusa na matéria, nem por sombra, e para mim isto me basta [...]» (cartas do Abade António da Costa, 1744, in Corpus do Português).

2. «Mas o meu rapaz, o meu Ferrabrás; o meu contimpina, que de dia dorme, e de noite maquina! Oh! Esse, nem por sombras me quer aparecer, ou eu pude ver! Bárbaros! Assassinos! Traidores!» [Qorpo Santo (José Joaquim de Campos Leão), Certa Entidade em Busca de Outra, idem)

É de acrescentar que, em castelhano, se conhece expressão homóloga, «ni por sombra(s), pelo menos, desde o século XVII:

3. «Que reconozcáis, os diré, lo general de la vanidad de la cosa en sí misma. Que por aumento sólo de fausto ni por sombra la solicitéis o apetezcáis.» (Antonio Lópe...

Pergunta:

Em 2008, [foi] dada uma resposta relativamente [ao tema de] todo. Depois de ler esta resposta, continuo com dúvidas relativamente a esta questão.

Quando os determinantes significam «inteiro», em frases como «comi o frango todo» ou «comi todo o frango», a segunda opção não me soa tão bem como a primeira. Não sei se existe algum motivo para isso, mas reconheço que pode ser apenas uma questão pessoal, de uso. Porém, quando o quantificador significa «qualquer» ou «cada» (ainda que, por vezes, me custe reconhecer em algumas frases este significado), nem sempre é possível intercambiar o lugar de todo/a.

Em frases como:

1. “procurei-o por todo o lado” vs. *”procurei-o pelo lado todo” (O significado é «qualquer» ou «inteiro»?)

2. “procurei-o por toda a parte” vs. *“procurei-o pela parte toda” (O significado é «qualquer» ou «inteiro»?)

3. “todo o bebé chora” vs. “o bebé todo chora” (no segundo caso, acho que se trata de um uso adverbial, tal como em “ficou todo zangado” e não significa o mesmo).

4. “todo o médico tem a sua maneira de lidar com os doentes” vs. *o médico todo tem a sua maneira de lidar com os doentes”.

5. “toda a gente chora” vs. “a gente toda chora” (no segundo caso trata-se de um uso adverbial?)

A minha dúvida relativamente ao significado deste quantificador, particularmente quando se indica que tem a aceção de «cada» e «qualquer», também está relacionada com os exemplos dados na resposta do Ciberdúvidas em 2008. Todos os exemplos estão [no] plural. Acho que quando se usa todos

Resposta:

Os usos exemplificados de 1 a 5 são casos do uso de todo no sentido de «cada» (ou eventualmente «qualquer», como acontece com 3 e 4). A particularidade deste uso está em o quantificador universal todo assumir a forma de singular, não porque refira uma unidade ou um indivíduo, mas, sim, porque tem valor genérico, isto é, como referência a toda uma classe de seres, sem a ancorar numa situação temporalmente específica:

1. “procurei-o por todo o lado” = «... todos os lados»

2. “procurei-o por toda a parte” = «... todas as partes»

3. “todo o bebé chora” = «todos os bebés choram»

4. “todo o médico tem a sua maneira de lidar com os doentes” = «todos os médicos...»

No caso de 5 – «toda a gente chora» – não é possível evidenciar o mesmo tipo de correspondência, uma vez que gente tem sentido coletivo e semanticamente é uma pluralidade, equivalente a «pessoas».

Os usos antes comentados não são invulgares no português de Portugal. Pelo contrário, até são frequentes, e, para todo ser interpretado como sinónimo de cada, tem de se encontrar em posição pré-nominal e em enunciados genéricos, com o verbo no presente do indicativo; com outros tempos verbais e se aparecer em posição pós-nominal, passa a significar «inteiro»:

(a) «todo o dia é uma aventura» (= «em geral, cada/qualquer dia é uma aventura»);

(b) «todo o dia choveu» (= «o dia inteiro», porque a frase não é genérica, como indicia o uso do pretérito ...

Pergunta:

A expressão «prá frente» existe, é aceitável, está bem escrita?

Resposta:

Escreve-se «prà frente» (com acento grave) e é a grafia de uma forma popular de pronunciar «para a frente». Só se justifica grafar prà* numa mensagem escrita como marca de oralidade, procurando reproduzir o português informal ou popular.

*Forma que só se usa em Portugal, como contração da preposição para e do artigo definido a.